Perfil

Zé Luiz do Império

Por Rogério Lessa Benemmond - 26/09/2003

A noite de 17 de setembro no Carioca da Gema, no Rio, com certeza não foi das mais rotineiras. Mestre Walter Alfaitate; Moacir Luz (de disco novo); o lendário Baiano, dos causos do Chico Genu, e até políticos importantes como o deputado estadual Gilberto Palmares (ex-colega de Embratel, onde trabalhou por 28 anos, desde a fundação) estavam presentes para prestigiar a apresentação do amigo Zé Luiz, líder da Velha Guarda do Império Serrano. Não é para menos. Zé Luiz do Império é fundador da ala dos compositores da Escola de Samba Quilombo, dissidência que Candeia liderou, descontente que estava com rumo que as escolas vinham tomando.

Zé Luiz é co-autor de sambas nacionalmente cantados, como "Tempo Ê", com Rufino e na voz de Roberto Ribeiro, além de "Malandros Maneiros" (também com Ribeiro), "Eu Não Fui Convidado" e "Minha Arte de Amar" (Fundo de Quintal). Ao lado do parceiro Nei Lopes, emplacou "Nosso Nome: Resistência" e "Dona Zica, Dona Neuma" com Alcione, mais "Água de Barrela" com Marquinhos Satã.

Depois do espetáculo, Zé Luiz falou à Revista Música Brasileira. Ele cobrou respeito das autoridades pela cultura carioca e deixou claro que os sambistas do Império conhecem o próprio valor e não confundem humildade com subserviência. “Não é nossa função sair com o disco na mão para tentar vendê-lo”, disse, sobre o projeto do CD da Velha Guarda do Império, entregue nas mãos do ministro da Cultura, Gilberto Gil.

Você também vê, como Nei Lopes, o desfile das escolas como algo decadente? Qual a perspectiva para os jovens?

Bastante decadente. A situação é delicada porque a culpa não é dos jovens. Eles até são muito interessados no chamado samba de raiz – termo que não gosto de usar - mas eles não estão dentro das escolas de samba. É um grande mal. Digo que o assunto é delicado porque as escolas ficaram assim, em parte, por causa do sambódromo e da mídia.

Como vê o carnaval pós-sambódromo?

Para a representatividade mesmo, o sambódromo não acrescentou nada. Noto que a comunidade não tem mais tesão. Filhos e netos de sambistas, que deveriam dar prosseguimento, sofrem a mesma influência da classe média. E as alas de compositores são espaço fundamental para o samba.

A crise às vezes não significa oportunidade de renovação?

Está demorando muito essa renovação. Não é só o samba, mas a cultura e o modo do carioca viver. Não estão sendo olhados decentemente por quem deveria olhar. Se as manifestações autênticas de nossa cultura não aparecem, o que fazer? Falta respeito. Começam a aparecer outras coisas, por caminhos diferentes. Pode parecer que sou saudosista, mas em Vigário Geral tinha escola de samba, mas a mídia divulga outros ritmos nas campanhas contra a criminalidade.

Isso chega a ser falta de ética da mídia?

Sim. Veja as pegadinhas. Ás vezes me revolto de estar achando graça. E é uma cultura importada. Não há programação alternativa, do Rio. É de São Paulo, que tem poder financeiro maior. E o carioca está absorvendo essa babaquice. Sou carioca mesmo e como tal estou dando esta opinião.

Há perseguição a tudo que é genuinamente brasileiro, sobretudo carioca?

Eu hoje não sinto tanto como perseguição, como se fôssemos vítimas. Há uma coisa muito inteligente de não deixar as pessoas que pensam terem voz. É uma covardia e eu me sinto meio cansado de dar murro em ponta de faca. Tudo tem que ser feito a toque de caixa, mas quando o trabalho é bom as pessoas gostam. Um exemplo foram os dois meses do Jongo da Serrinha no teatro Carlos Gomes.

Tem esperança no ministro da Cultura Gilberto Gil?

É uma pessoa da música. O disco da Velha Guarda do Império foi entregue nas mãos dele. É a única Velha Guarda que ainda não gravou, mas somos meio pretenciosos: não é nossa função sair com o disco na mão para vender. Queremos trabalho dentro da nossa proposta. O Império Serrano é orgulhoso.

Em que sentido?

A Mangueira é o centro das atenções da mídia e a Serrinha não é tão diferente das outras comunidades. Agora mesmo, a Central do Brasil está homenageando os 75 anos da Mangueira. Porque não homenagear as outras? A Mangueira está de parabéns, mas quando se foca a representatividade só em uma, o resto enfraquece. Cartola já dizia “respeitar Osvaldo Cruz”. Uma visão de união, que existe nos sambistas, mas que a mídia não contempla. A chamada de escola de samba fica enfraquecida, como o Império hoje.

Como é trabalhar a Velha Guarda nesse contexto?

Muitos integrantes são descendentes da resistência, dos portuários. Tudo para o Império sempre foi difícil. Desde 1947 (ano da fundação). É a cara da Escola. Nosso trabalho é desgastante, mas também é legal até porque a importância dos componentes é muito grande. Temos o melhor diretor de bateria, o filho de Mestre Fuleiro; Wilson das Neves, o maior baterista do Brasil. Ninguém ali está de favor, ninguém é Pai João. Temos nossa elegância e transmitimos no palco.

A atual formação é a primeira?

Já houve uma anterior, com Mestre Fuleiro, Tio Hélio, Aniceto, Campolino, que também não tinham cara de Paulo da Portela. Somos de outra praia, coisa de malandro, de cais do porto, sem ninguém para doutrinar. Bem descontraído. É isso que nos une, além da sinceridade. Dá o maior prazer conviver com essa turma, alguns mais velhos, outros mais novos.

Mas você é o líder...

Tenho exercido essa liderança não por imposição, mas por indicação e até pela aceitação geral. É uma democracia bagunçada, mas funciona.

Para onde vai o movimento das Velhas Guardas?

Vejo com bastante descrença. Se não tem samba de terreiro ou enredo que preste, permanecerão apenas as maiores, Salgueiro, Mangueira, Portela, Império e algumas exceções como Vila Isabel, que temos de respeitar pelo bairro, pelo Noel, pelo Martinho. Vejo com muita satisfação o fato deles cantarem muitos sambas de Noel. Mas as outras não têm história e cada vez terão menos porque não tem a figura do orientador, a referência. Nós tivemos essa referência: Silas (de Oliveira), Mestre Fuleiro, Mano Décio. É inesgotável nosso repertório e ainda há muito mais a ser cantado. Mas eu queria muito mais. O nome escola de samba é para isso.

Você tem luz própria, empolga. Como vê pessoas sem valor enriquecendo e a inexplicável vendagem do lixo cultural?

Nunca pensei nisso, de fazer sucesso. Sou aposentado da Embratel desde 1997 e perdi dinheiro na época. Hoje temos fila de 100 mil para trabalhar na Comlurb. Em relação a muita gente, não estou mal. A riqueza deveria ser melhor divida, principalmente em relação à arte. O artista tem que ser tratado de forma diferente. Enquanto são promovidas passeatas contra criminalidade, que não deixam de ser contra o Rio e que atraem milhares, o movimento pela cultura não junta nem mil pessoas. A Bahia sabe fazer isso, mesmo com o Axé, de qualidade discutível.

Você é fundador da ala dos poetas do Quilombo, uma iniciativa de resgate e resistência. A saída da situação atual estaria na educação?

Sou fundador da ala dos compositores, não da Escola, que foi criada por um pequeno número de pessoas, quando Candeia liderou a dissidência, descontente com a Portela e com o rumo das escolas de samba em geral. Depois, através de Nei Lopes e Wilson Moreira, fomos chegando e fundamos a ala dos compositores. Quanto à educação, ela é fundamental. Estudei música e até francês no colégio. Até para ocupar o tempo dos jovens isso é importante. O Jongo, por exemplo, está forte mas é uma gota d’água. A cultura carioca não é peça de museu, precisa ser cantada e dançada, não vista como uma exposição de Van Gogh.

Bons analistas te classificam como “melodista refinado e letrista de idéias originais”. De onde vem esse talento?

Não toco nenhum instrumento (um pouco de cavaquinho). Tive a sorte de ter influências como Wilson Moreira. Sou admirador de Cartola e escutava música de um modo geral, quando se podia escutar rádio. Por isso me considero privilegiado. Gostaria que outros tivessem a chance de ler e ouvir as coisas que eu tive, principalmente no Rio, o grande refletor da cultura brasileira.