Memória

Picolino da Portela: uma luz que não se apaga

Por Gerdal J. Paula - 12/02/2014

"Quando no mar uma embarcação a navegar/deixa um coração a soluçar/por alguém que partiu pra não voltar..."

Há alguns anos, na única vez em que estive em Madureira por causa da celebração do Dia Nacional do Samba, encontrei, por acaso, lá pelas tantas, em rua próxima a um dos lados da estação ferroviária, um dos responsáveis pela revivência dessa festa no bairro, Marquinhos de Oswaldo Cruz. Conversando com ele, destacamos a figura de um grande compositor portelense, que não é dos mais visados na animação das rodas ou em regravações: Claudemiro José Rodrigues, o Picolino (fotos abaixo). Lembro-me até do Marquinhos indicando-me, não muito distante de onde estávamos, em gesto elevado e alongado de braço, a casa onde havia morado o compositor, que se aposentara do batente pelo Departamento Nacional de Portos e Vias Navegáveis. Assim como "O Teu Passado Impede o Futuro", que gravou em elepê de capa abaixo reproduzida, outra pepita do samba em tom menor, "Lenços Brancos" (de versos iniciais em epígrafe), é obra maior da lavra de Picolino, muito bem cantada por sua grande intérprete, Eliana Pittman.
Também na voz dessa cantora carioca faz a sua saudação a outros bambas em "Tô Chegando, Já Cheguei", ele que, em 1950, aos 20 anos, adentrou pela primeira vez, para ficar até a morte, o terreiro portelense, egresso, já compositor, do bloco Unidos da Tamarineira, de Oswaldo Cruz. Conhecendo na nova agremiação Candeia e Waldir 59, nela integraria com eles um setor famoso no desfile de carnaval, a Ala dos Impossíveis (a primeira a surgir com coreografia), que lhes possibilitou, em meados dos anos 50, no clube High Life, na Glória, apresentação com as orquestras de Severino Araújo e Cipó. Em 1957, saborearam, juntos, o prazer de ver a azul e branco atravessar a passarela levando no gogó o belo "lençol" (samba descritivo e longo) que fizeram para o enredo "Legados de D. João VI", gravado naquele mesmo ano pela Sinter em "A Vitoriosa Escola de Samba Portela", um pioneiro elepê da escola.
Ainda com Candeia e mais Casquinha, Casemiro, Arlindo, Jorge do Violão e Davi do Pandeiro, formou, em princípios dos anos 60, quando de revitalização do chamado samba de raiz, o grupo Mensageiros do Samba. Uma bolacha da Philips foi a única, então, dessa experiência conjunta a girar no prato da vitrola, consequência que, infelizmente, não viria de outra formação, de 1966: o Trio ABC (foto abaixo), da mesma Portela, em que Picolino teve como parceiros de canto, composição e ritmo Noca (feirante recém-chegado da Paraíso do Tuiuti e levado por Paulinho da Viola à nova escola) e o multifuncional Colombo (peixeiro, guarda portuário, cantor de gafieira, técnico em Comunicação e auditor fiscal do INSS ao longo da vida - um baiano falecido em 2004).
Se não chegou ao vinil, o trio teve acesso a programas de grande audiência da nossa tevê, como os de Chacrinha e Flávio Cavalcanti, além de ter realizado shows por todo o país. Em 1967, em festival de músicas de carnaval promovido pela Secretaria de Turismo da então Guanabara e pelo Museu da Imagem e do Som, presidido por Ricardo Cravo Albin, em associação com a TV Excelsior, Picolino, Noca e Colombo obtiveram, na final do Maracanãzinho, a quinta colocação com "Portela Querida" ("Minha Portela querida/és razão da minha própria vida..."). Um samba que ganharia projeção na mídia com a gravação, em compacto simples da Odeon, por sua intérprete no certame, Elza Soares, laureada com o troféu Carmen Miranda, entregue por Aurora Miranda. O coração da cidade, mais uma vez, deixava-se levar pelo rio de beleza musical da Portela, para o qual o afluente Picolino, com suas águas autorais, muito concorreu. Uma saudade que ficou a mais (como ele mesmo cantou em música de Erivaldo Santos e Valentim) e se fixou no firmamento do samba, tornando-se uma outra estrela de Madureira que não se apaga.