Memória

Luiz Gonzaga - A voz de um povo sem voz

Por Luís Pimentel - 30/10/2008

Nenhum artista brasileiro foi tão importante para a cultura das regiões Nordeste e Norte do Brasil, para a divulgação de como vivia, trabalhava e sofria o homem do mato quanto Luiz Gonzaga do Nascimento, filho do mestre sanfoneiro Januário e da roceira Ana Batista de Jesus, que um dia saiu da pequena cidade de Exu, região do Araripe, no sertão pernambucano, para conquistar o Brasil e fazer sua sanfona conhecida nos quatro cantos do país e até no exterior (infelizmente, só no fim da vida conheceu o sucesso lá fora, quando a convite da cantora Nazaré Pereira fez um belíssimo show em Paris, na casa de espetáculos Bobino). A música de Luiz Gonzaga, que foi coroado “Rei do Baião”, tem para o povo do Norte e do Nordeste do Brasil a importância da fé no Padre Cícero Romão. E já subiu ao posto mais alto do pódio onde também merecem medalhas o xaxado de Jackson do Pandeiro, a arte de barro do mestre Vitalino, a poesia de Patativa do Assaré e de Azulão e a sabedoria moleque de Ariano Suassuna.

Luiz Gonzaga nasceu no dia 13 de dezembro de 1912, na roça, e passou a infância ajudando o pai e o irmão mais velho a plantar milho e feijão na fazenda Caiçara. Januário tinha fama de ser o maior sanfoneiro da região, ganhava uns trocados animando festas juninas e outros arrasta-pés, e o filho logo se interessou pelo ofício e pelo instrumento. Ganhou uma sanfoninha, depois comprou outra um pouco melhor quando serviu ao Exército e um dia empunhou um acordeon profissional para encantar os conterrâneos e correr o chapéu na antiga zona do mangue do Rio de Janeiro, cercanias dos bairros do Estácio e Praça Onze, onde o Rei desembarcou com vinte e poucos anos de idade para fazer o seu nome. E que nome. Herança e orgulho do cancioneiro popular do Brasil.

“O candeeiro se apagou/O sanfoneiro cochilou/A sanfona não parou/E o forró continuou”. Continuou por mais de meio século, período em que o Gonzaga gravou mais de cem discos (entre 78 rotações, LPs e CDs) e compôs grande número de sucessos, com mais de uma dezena de parceiros (os mais freqüentes foram Humberto Teixeira, Zé Dantas, João Silva, Hervê Cordovil, Guio de Moraes e Onildo de Almeida).

Gonzagão (apelido que ganhou quando o filho Luiz Gonzaga Júnior começou a fazer sucesso na MPB. Existem controvérsias com relação a essa paternidade, pois alguns livros, depoimentos e documentos dão conta de uma possível esterilidade de Luiz Gonzaga. Segundo esses depoimentos, Gonzaguinha, que fora criado no Morro de São Carlos pelo casal Dina e Xavier, compadres de Luiz, seria na verdade filho de uma namorada do sanfoneiro, que mais tarde veio a ser sua companheira) viveu fases muito distintas durante sua trajetória artística. Conheceu o sucesso de perto e andou colado com ele por muitos anos, ganhou dinheiro suficiente para instalar no Rio de Janeiro seus pais e irmãos, distribuindo casas e sítios para todo mundo, mas também enfrentou fases difíceis na vida, de sucesso quase nenhum, vendas inexpressivas de discos e alguma proximidade com o ostracismo.

Luiz Gonzaga era um artista mambembe, que corria o Brasil inteiro, ano a ano, fazendo shows das grandes capitais aos municípios distantes e minúsculos. Em todas as excursões incluía o Nordeste, pois tinha verdadeira paixão pelo seu povo. Batalhou durante toda a vida para pacificar a cidade de Exu, quando esta vivia uma eterna guerra entre duas famílias rivais (Alencar e Sampaio) que transformaram a região em verdadeiro inferno, com um mata-mata que parecia jamais ter fim. Não sossegou enquanto não conseguiu a paz, além de escolas agrícolas, frentes de trabalho e produção de poços artesianos que em muito minimizaram as agruras das secas.

“Seu Luiz”, como era carinhosamente tratado pelos amigos, vivia repetindo que não poderia prescindir de parceiros, porque não sabia trabalhar sem um poeta do lado. Achava-se um homem rude e sem traquejo com as palavras, o que não era verdade. Luiz Gonzaga tinha, sim, um olhar extremamente poético sobre o mundo e o revelou diversas vezes em entrevistas, participações em programas de rádio e TV e no longo depoimento que deu à pesquisadora francesa Dominique Dreyfus, autora do livro Vida do viajante: a saga de Luiz Gonzaga. Explicando a ela, por exemplo, a razão dos longos períodos de chuva que costumavam alegrar Exu, o Rei do Baião disse em poucas palavras o que um meteorologista gastaria muito verbo para dizer: “O pé de serra tem sempre essas matas, essas montanhas que atraem as chuvas. Tem um vento que desvia o rumo da chuva. Ela se forma, vem e quando chega no alto da serra, se divide, parte pra tudo que é canto”.

A música brasileira deve muito a Luiz Gonzaga, à sua antena sempre direcionada no rumo da expressão mais pura do povo, à sua voz encorpada e doce, capaz de derreter os mais duros corações, e à sua sanfona de prata, “do povo”, como ele mandou gravar certa vez no instrumento. Para o cantor e compositor baiano Gilberto Gil, que sempre se disse um discípulo e devoto apaixonado do iluminado forrozeiro, o nome de Luiz Gonzaga “se inscreve na galeria dos grandes inventores da música popular brasileira, como aquele que, graças a uma imaginativa e inteligente utilização de células rítmicas extraídas do pipocar dos fogos, de moléculas melódicas tiradas da cantoria lúdica ou religiosa do povo caatingueiro, e, sobretudo da alquímica associação com o talento poético e musical de alguns nativos nordestinos emigrantes como ele, veio a inventar um gênero musical” (em prefácio para o livro de Dominique).