Memória

Aracy de Almeida – 90 Anos

Por Marcus Fernando - 22/11/2004

Ela nasceu Araci Teles de Almeida em 19 de agosto de 1914, no subúrbio carioca do Encantado. Começou cantando hinos religiosos na Igreja Batista. Em 1933 conheceu o compositor Custódio Mesquita, que a levou para a Rádio Educadora do Brasil. Já no ano seguinte começou sua carreira discográfica na Columbia, mas viria a deslanchar com as gravações na Victor em 1935. O primeiro grande sucesso foi "Tenha pena de mim", de Babaú e Ciro de Souza. Na Columbia gravou com Pixinguinha e sua orquestra; na Victor com Benedito Lacerda e seu regional, Os Diabos do Céu, Grupo do Canhoto, Os Reis do Ritmo, Boêmios da Cidade, entre tantos outros conjuntos da época. A partir de 1942 passa a gravar na Odeon e em 1950 transfere-se para a Continental. Suas últimas gravações aconteceram na Philips na década de 1960.

O compositor Noel Rosa é um capítulo a parte na biografia de Aracy. Depois de um bate-papo na Taberna da Glória, onde se conheceram em 1934, o compositor mostrou a ela aquela que viria a ser sua primeira gravação, "Riso de Criança". Sua identificação com Noel foi tão forte, que em pouco tempo Aracy já havia registrado cerca de 10 músicas do Poeta da Vila. Ela foi a responsável por manter viva a obra do compositor que, tendo morrido muito jovem, estaria fadado ao esquecimento não fosse Aracy continuar gravando sua obra, começando por "Último Desejo", apenas dois meses após a morte dele. Treze anos depois, ela lançaria em dois 10 polegadas um "songbook" – embora ainda não se usasse o termo – com a síntese da obra noelina. A que ela mais gostava de cantar era "Feitio de Oração", parceria com Vadico.

Interpretações memoráveis marcaram sua trajetória. Quando falamos em Assis Valente e Ary Barroso lembramos logo de Carmem Miranda, mas quem já ouviu Aracy cantando "Fez Bobagem" e "Camisa Amarela" sabe que foi ela quem imortalizou esses clássicos. Com sua voz ligeiramente anasalada, ela deixava sua marca tanto em uma marchinha de carnaval como "O Passarinho do Relógio" quanto em uma canção de fossa como "Se eu morresse amanhã de manhã".

Cheia de bossa, com uma divisão toda especial, ganhou o título de "O Samba em Pessoa". O ritmo ficou associado à sua carreira até o fim da vida. Seu último disco, gravado em 1966 a convite de Aloysio de Oliveira para o selo Elenco, chamou-se "Samba é Aracy de Almeida".

Seu vocabulário particular dá pra montar um pequeno dicionário de frases e expressões. Mário de Andrade, com quem conviveu, era um matusquela. Noel era grilado, cheio de transas e tal e aos 27 anos apagou, bateu com as dez. Ary Barroso achava que ela só falava calão e outras minhocas mais e certa vez, depois de beber além da conta, foi encontrado botando alpiste pelo ladrão. Ela admitia seu mau humor dizendo ter os bofes azedos. Se dizia uma moça que vinha do subúrbio e estava querendo entrar numas zorras que não ia dar pedal mesmo. Sobre as óperas que ouvia com freqüência no radio, dizia: Adoro aquele berreiro! Figura da noite, sempre que convidada a cantar se negava, pois afinal quem canta de graça é galo.

Nunca teve papas na língua e é protagonista de histórias memoráveis, como aquela da festa elegante em que um rico industrial paulista resolve apresentá-la à esposa que disse:

– Dona Aracy, a senhora não imagina quanta honra é conhecê-la pessoalmente. Como vai passando?

Ao que Aracy com muita naturalidade respondeu:

– Ah, minha filha, eu ando muito fudida!

Mostrando toda sua versatilidade, antes de dar por encerrada a carreira de cantora e virar jurada de televisão, Aracy gravou um disco com o conjunto de Roberto Menescal, participou de festival e pediu música a Caetano Veloso, que compôs especialmente pra ela "A Voz do Morto", cuja letra mais uma vez reforça a vocação de Aracy: "Eu sou cigana, eu sou terrível, eu sou o samba".

Apesar de ter morado 12 anos em São Paulo, foi no mesmo bairro do Encantado onde nasceu, que faleceu em 20 de junho de 1988.

No ano em que completaria 90 anos, pouco se falou de Aracy. As poucas homenagens não foram suficientes em vista da importância de seu legado para a música brasileira. A mais importante foi o lançamento de um perfil da cantora, "Araca – Arquiduquesa do Encantado" (Edições Folha Seca), escrita pelo araciano-mor Hermínio Bello de Carvalho. Que a memória de Aracy não tenha que esperar seu centenário para voltar a ser lembrada.