Memória

110 anos de Nelson Cavaquinho

Por Luís Pimentel - 01/11/2021

     “Fui o pior soldado da história da Polícia Militar do Rio de Janeiro!”, disse ele, certa vez. E não estava exagerando. Nelson Cavaquinho começou a vida como cavalariano no Batalhão de Cavalaria da PM, onde ficou sete anos. Metade em cima do cavalo, metade na prisão. Foi o mais assíduo hóspede do xadrez do quartel da Rua Evaristo da Veiga. Mas como para ele tudo tinha uma explicação, dos porres exagerados às vendas de sambas aos “comprousitores” de plantão, as prisões tinham lá suas vantagens:
“Era bom pegar cana. Se não fosse o xadrez do batalhão, eu não teria feito muito samba de sucesso”. Às vezes ficava um mês confinado. Então aproveitava a tranqüilidade para compor.
“Começar a vida” é força de expressão. Na verdade, antes de encarar o Batalhão de Cavalaria da PM, Nelson enfrentou outros batentes para ajudar no orçamento da família modesta (trabalhou em fábrica de tecidos no subúrbio de Deodoro, na função de ajudante de tirador de resíduos, e como auxiliar de eletricista em uma pequena empresa no centro da cidade). O pai, Brás Antônio da Silva, era tocador de tuba da Banda da PM; a mãe, a paraguaia Maria Paula da Silva (basta ver em qualquer foto de Nelson Cavaquinho os fortes traços e a cor marcante da herança indígena guarani), trabalhava como empregada doméstica em casas de família próximas à sua residência, entre a Tijuca e o Rio Comprido.
Nelson Antônio da Silva nasceu no Rio de Janeiro, na Rua Mariz e Barros, imediações da Praça da Bandeira, no dia 28 de outubro de 1911. Outros documentos registram o ano de 1910. Ele afirmava ser mesmo do ano de 1911 e atribuía ao pai o registro feito com data de um ano antes, para apressar sua entrada na Polícia Militar, onde sentou praça e recebeu as rédeas de um cavalo. Tinha que fazer a ronda montado, apesar de morrer de medo do animal. No meio do caminho desistia da ronda e deixava o cavalo amarrado em uma cerca no pé do Buraco Quente, no Morro da Mangueira. Ali varava as noites com os amigos e depois parceiros Cartola, Carlos Cachaça e Zé Com Fome. Voltava para o quartel dias depois, sem o cavalo – que geralmente se soltava e ficava vagando e pastando pelas ruas. Aí, tome xadrez para aumentar a produção musical.
Além dos bares da Mangueira, Nelson foi frequentador assíduo dos botecos da Praça Tiradentes (e havia inúmeros em sua época). Em um deles, conhecido pelo simpaticíssimo nome de Cabaré dos Bandidos, passou noites memoráveis regadas a cerveja preta e criações musicais, ao lado do eterno parceiro Guilherme de Brito. Recatado e trabalhador, o pacato e elegante Guilherme era empregado na empresa de discos Casa Edson, de onde partia após o expediente para encontrar o parceiro. Depois que Guilherme se despedia (afinal de contas no dia seguinte tinha que trabalhar), Nelson prosseguia em sua ronda noturna que se expandia, invariavelmente, ao meretrício da zona do mangue, nas imediações da Praça Onze, onde às vezes esbarrava com Noel Rosa, e a minúsculos e escondidos botequins de subúrbio.
Pouco antes de morrer ele estimou sua produção em algo em torno de 800 músicas, cerca de 400 gravadas, umas 100 inéditas e “pelo menos 300 vendidas, totalmente ou só a parceria”. Apesar dos números de sua obra, quando partiu, no dia 18 de fevereiro de 1986, vítima de enfisema pulmonar (foi encontrado em sua cama, ao lado do violão, pela mulher com quem passou os últimos anos, Durvalina). Foi velado na quadra da Mangueira, escola do coração, palco onde reinou e fez tantas amizades.
(Desenho de Amorim)