Homenagens

Raul Seixas: a beleza eterna das maluquices

Por Marcio Paschoal (*) - 06/02/2019

Alguns o achavam brega, outros um artista marqueteiro, ainda havia quem o considerasse meio caricato. O tempo foi o divisor do seu talento, já que após sua morte, há quase trinta anos, ainda muito se fala dele e comenta-se a sua arte. O cantor e compositor Raul Seixas marcou gerações, bateu recorde de pedidos em karaokês e teve a sua obra revirada e revisitada por ícones da nossa música popular. Houve uma época em que não havia música ao vivo sem o emblemático pedido da plateia de “toca Raul”. O reconhecimento póstumo pode vir devido a detalhes ou circunstâncias especiais. No caso de Raul, o que valeu foi o seu pioneirismo e sua verve irônica. O cara era bom mesmo.
Raul começou como produtor musical de artistas como Jerry Adriani, Tony & Frankye, Osvaldo Nunes, Diana e Edy Star.
Após o lançamento do LP “Krig-ha Bandolo” (1973) ele passou a ganhar notoriedade, especialmente com os sucessos “Ouro de Tolo”, “Mosca na Sopa” e seu hino de vida “Metamorfose Ambulante”.
Inquieto por excelência, mudava e se transformava a todo instante. Agnóstico, descobriu a sua Sociedade Alternativa, influenciado pelo ocultista inglês Aleister Crowley. Foi amigo de outro rebelde, Sérgio Sampaio, e depois parceiro de Paulo Coelho, que naquela época ainda não era conhecido como recordista de vendagem de livros estranhos.
Mesmo depois de morto, Raul permaneceu nas paradas. Foram produzidos vários álbuns póstumos e um sem número de coletâneas. Sua ex-mulher produziu um livro com escritos dos seus diários. Zé Ramalho lançou um DVD cantando Raul, e em 2015, a Som Livre lançou o CD “O Baú do Raul – 25 Anos Sem Raul Seixas”, com de Jerry Adriani, Nação Zumbi, Zeca Baleiro, Marcelo Nova, entre outros.
O fato de Raul Seixas continuar em evidência deve-se também ao seu lado místico e contestador, caracterizado por sua obra que provoca e angaria adeptos, notadamente o público jovem. Para amenizar um pouco a falta das loucuras sãs de Raul, uma seleção de bons momentos de suas melhores criações. São insetos metafóricos, menções a Al Capone, Gita e São Pedro, sociedades visionárias, deuses agnósticos, discos voadores, aranhas genitais e apologia ao poliamor. Abaixo, uma pequena amostra do vernáculo maluco-beleza de Raulzito:

Não diga que a canção
Está perdida
Tenha fé em Deus
Tenha fé na vida
Tente outra vez.
Eu sou o amargo da língua
A mãe, o pai e o avô
O filho que ainda não veio
O início, o fim e o meio.

Se eu quero e você quer
Tomar banho de chapéu
Ou esperar Papai Noel
Ou discutir Carlos Gardel
Então vá! Faz o que tu queres
Pois é tudo da Lei!

Eu prefiro ser
Essa metamorfose ambulante
Do que ter aquela velha opinião
Formada sobre tudo.
Enquanto você
Se esforça pra ser
Um sujeito normal
E fazer tudo igual
Eu do meu lado
Aprendendo a ser louco
Um maluco total
Na loucura real.

Se eu te amo e tu me amas
Um amor a dois profana
O amor de todos os mortais
Porque quem gosta de maçã
Irá gostar de todas
Porque todas são iguais...

Amor só dura em liberdade
O ciúme é só vaidade
Sofro, mas eu vou te libertar
O que é que eu quero
Se eu te privo
Do que eu mais venero
Que é a beleza de deitar...

 

Hei, Jimi Hendrix, abandona o palco agora
Faça como fez Sinatra, compre um carro e vá embora
Hei, Jesus Cristo, o melhor que você faz
É deixar o Pai de lado e foge pra morrer em paz.

Traga a sua bola de cristal
E aquele incenso do Nepal
Que você comprou num camelô
E me empresta o seu colar
Que um dia eu fui buscar
Na tumba de um sábio Faraó.

Quem não tem colírio usa óculos escuros
Quem não tem filé come pão e osso duro
Quem não tem visão bate a cara contra o muro.

Mamãe eu não quero ser prefeito
Pode ser que eu seja eleito
E alguém pode querer me assassinar
Eu não preciso ler jornais
Mentir sozinho eu sou capaz
Não quero ir de encontro ao azar.


Eu vi o sangue que corria da montanha
Quando Hitler chamou toda a Alemanha
Vi o soldado que sonhava com a amada
Numa cama de campanha


Nascer horrendo, triste, cego e louco
Sem mãe, sem pai, sem fé, sem nada
Um pouco de lama, abandonado no caminho
Sem ter de meu, um gesto de carinho
Nascer assim, até aguento
Desde que eu possa
Nascer livre.


Eu não tenho nada a te dizer
Mas não me critique como eu sou
Cada um de nós é um universo, Pedro
Aonde você vai eu também vou.


Eu sou a mosca que pousou em sua sopa
Eu sou a mosca que pintou pra lhe abusar
Eu sou a mosca que perturba o seu sono
Eu sou a mosca no seu quarto a zumbizar.

 

Eu devia estar contente
Porque eu tenho um emprego
Sou um dito cidadão respeitável
E ganho quatro mil cruzeiros por mês
Eu devia agradecer ao Senhor
Por ter tido sucesso na vida como artista
Eu devia estar feliz
Porque consegui comprar um Corcel 73.

Eu que não me sento
No trono de um apartamento
Com a boca escancarada cheia de dentes
Esperando a morte chegar
Porque longe das cercas embandeiradas que separam quintais
No cume calmo do meu olho que vê
Assenta a sombra sonora de um disco voador.

O eco de suas palavras não repercute em nada
É sempre mais fácil achar que a culpa é do outro
Evita o aperto de mão do possível aliado,
Convence as paredes do quarto
E dorme tranquilo sabendo do fundo do peito
Que não era nada daquilo.