Homenagens

A alma cabocla de Hekel Tavares

Por Daniel Brazil - 12/05/2009

O maestro Eleazar de Carvalho costumava chamar Hekel Tavares de “Schubert brasileiro”. Não por causa do neo-romantismo nacionalista, mas pelo fato de, como o mestre alemão, lidar com canções populares, de origem folclórica, transformando-as em peças elaboradas, que conquistaram intérpretes populares e eruditos, sem distinção.

Claro que há canções tão permanentes que muitos brasileiros nem desconfiam o quanto devem ao empenho de Hekel Tavares em recolher, trabalhar e divulgar este material. E provavelmente nunca saberemos em que medida o compositor alagoano ampliava e criava sobre as pedras brutas que encontrava e lapidava.

O certo é que Hekel (1896/ 1969) nasceu num berço musical. Além da mãe pianista e pai flautista, cresceu em Alagoas ouvindo repentes, reisados, maracatus e congadas, e isto marcou sua vida para sempre. Quando veio para o Rio de Janeiro, em 1921, já tocava piano, harmônica e cavaquinho.

Estudou harmonia e composição com os maestros Francisco Braga e J. Otaviano, entre outros. Da mesma geração que Villa-Lobos e Francisco Mignone, Hekel aliou a sólida formação musical ao amor pela profusão de ritmos e formas que a música popular lhe oferecia.

E foi no teatro de revista que começou a compor de forma profissional. Durante a década de 20 compôs várias canções, com diversos letristas. Um dos mais constantes, o bamba Luiz Peixoto, o levou ao sucesso radiofônico com Suçuarana, pela voz de Gastão Formenti. Com Peixoto emplacaria ainda Azulão e Casa de Caboclo, sucessos que atravessam gerações.

O comediógrafo Joracy Camargo, autor de mais de 50 peças, logo percebeu o potencial de Hekel, convidando-o a trabalhar no teatro, compondo e tocando piano. Foi parceiro de destaque, colocando letra em Guacyra (“Adeu, Guacyra, meu pedacinho de terra...”) , Leilão e Favela (“No carnaval, me lembro tanto da favela, oi, onde ela, oi, morava...”), entre outras.

Hekel tem canções com Olegário Mariano (Lavandeirinha), Lamartine Babo (Cariocadas), Ascenço Ferreira (Chove!... Chuva!...), Álvaro Moreira (Bahia), Raul Pederneiras (Caboclo Bom) e Mendonça Junior (O Que Eu Queria Dizer ao Teu Ouvido), além de peças que assinou sozinho, como Engenho Novo, Eu Vi... e Dança de Caboclo.

A letra que Nair Mesquita fez para Você, em 1928, sobre o tema folclórico Penas do Tiê, acabou virando um célebre caso de plágio envolvendo o cantor Fagner, nos anos 70. Recentemente Maria Bethânia e a cubana Omara Portuondo fizeram emocionada regravação desta que é uma das obras mais conhecidas de Hekel Tavares.

O casamento com Martha Dutra, em 1934, demarcou uma virada musical em sua vida. A partir daí, dedicou-se à música de concerto, mas continuou promovendo a fusão de ritmos populares com a escrita sinfônica. Escreveu peças para diversas formações. A mais estimada é, sem dúvida, o belo Concerto para Piano e Orquestra em Formas Brasileiras, um dos motores da carreira internacional da pianista Guiomar Novais, que conta com várias regravações de prestígio.

Em 2008 um bom CD com canções de Hekel Tavares foi gravado por Ana Salvagni (Alma Cabocla, patrocinado pela Petrobras e distribuído pela Tratore). Com belos arranjos e produção bem cuidada, a cantora desfia alguns dos maiores sucessos do grande compositor, coroando um belo trabalho de pesquisa.

São 16 canções deliciosas, registro da alma brasileiríssima de Hekel, filtradas pela voz límpida de Ana. As infalíveis Guacyra, Casa de Caboclo e Suçuarana se mesclam com canções menos conhecidas, ora brejeiras, ora melancólicas. As participações de convidados como Toninho Carrasqueira, Renato Braz, Filó Machado, Toninho Ferragutti, Proveta, Swami Jr., Paulo Braga e o violeiro Paulo Freire, sob a direção musical de Edson Alves, acrescentam diversidade timbrística ao conjunto.

O disco se encerra com um belíssimo Acalanto, onde Ana canta à capela, fazendo diversas vozes. Em 2009 a cantora faz shows de lançamento por todo o Brasil. Um bom motivo para nos reencontrarmos com um mestre que anda meio esquecido, mas que é, sem dúvida, um dos grandes da música brasileira.