Homenagens

77 anos de Chico Buarque

Por Luís Pimentel - 23/06/2021

(Publiquei esta crônica quando Chico Buarque fez 70 anos. Republico atualizada no mês dos seus 77; e a dose pode se repetir em 2024, nos seus oitentinhas. Isso porque o maior compositor vivo da música brasileira, hoje também um escritor superpremiado, continua o mesmo: nos vingando a cada canção, cada livro, cada declaração. Parabéns, poeta maneiro brasileiro.)
Chico nos vinga. Faz as canções que gostaríamos de fazer, escreve os livros que gostaríamos de escrever, declara o que gostaríamos de declarar e, quando veste sua alma com as idiossincrasias femininas, diz coisas que adoraríamos ouvir de algumas mulheres.
É assim, há mais de 40 anos. Desde o Pedro Pedreiro que esperava o trem que não vinha, em certo 1964 cujos trens traziam o que havia de pior, que Chico nos vingava com o domínio mais puro e perfeito da poesia que parecia perdida. Depois nos vingou com suas provocações sutis e inteligentíssimas ao regime militar que a todos nós oprimia. Não tínhamos voz nem talento para o enfrentamento; Chico tinha. Estávamos todos ali, com ele, por meio dele, também repetindo que o pior ia passar e que amanhã seria outro dia. E parece que Chico nos ouvia. Pois a cada dia compunha mais, duelava mais, nos representava mais e melhor, nos enchia de brios e de esperanças.
Chico Buarque de Hollanda, o menino da Maninha, que lembrava da jaqueira e ajudou a varrer tanta erva daninha chegou aos 77 anos (no último dia 19 de junho), cultivando o sorriso que é quase grife – não se vê uma sombra de ódio nem de revanchismo em seu olhar – e o talento que impressiona a cada investida artística. Segue nos vingando. Tive a felicidade de entrevistá-lo durante quatro horas, juntamente com os demais editores e colaboradores da revista Bundas, no dia de seu aniversário de 56 anos, no ano 2000. Luis Inácio Lula da Silva era apenas um contumaz perdedor de eleições e se preparava para vencer a primeira, o Brasil vivia um interminável e cínico império tucano, e Chico já apontava para o que esperava que um governo socialmente comprometido viesse a fazer:
– Não é possível que não se possa dar escola, sapato no pé, comida, hospital, atendimento básico, que não se possa fazer no Brasil algo parecido com o que se faz em Cuba, que é um país tão pobre.
O ídolo nos vingou pela inteligência e também pela simplicidade. Diante da pergunta de um dos tietes-entrevistadores (não há quem não se sinta tiete ao seu lado), “como você se sente, sendo o Chico Buarque”?, a resposta desconcertante:
– Eu não penso nisto. Tenho mais o que pensar.
Ao chegar em casa, a pergunta inevitável:
– Que tal a entrevista?
– Boa.
– Como é o Chico?
– Maneiro.
Pois me veio à mente certa noite no Carnaval de 1998, quando me preparava para ver o poeta pisar o chão de esmeraldas da Sapucaí, homenageado pela Estação Primeira de Mangueira. A caminho do desfile, parei em botequim do Estácio onde grupo animadíssimo batucava e entoava versos que diziam assim: “Página infeliz da nossa História/Passagem desbotada da memória”.
Molequinho de uns 11 ou 12 anos, na porta do boteco, repetia a letra, tintim por tintim.
– Sabe de quem é esse samba? – perguntei a ele.
– Claro. Chico Buarque – respondeu.
– Gosta do Chico?
– Pô!
– Que acha dele?
– Maneiro.

(Ilustração: Amorim)