Especial

Vamos ouvir juntos Anitta e Beto Guedes?

Por Lucio Carvalho - 09/08/2013

Alerto, você não deve pensar de imediato no que esses dois nomes estão fazendo juntos aí em cima. Também não se trata de um daqueles encontros improváveis que alguns programas de auditório ainda promovem vez ou outra. A questão deve, por outro lado, ser resumida na simples necessidade de aceitar-se os fatos como eles são. E isso no meu caso é inevitável, já que tenho filhos em idade de intensa curiosidade com o mundo e suas manifestações culturais, no sentido o mais amplo possível, como se antevê no título acima. Foi o que fiz no último mês, quando o ar polar invadiu o sul do Brasil e trancafiou a mim e minha família em casa, assim como fez com muita gente por essas bandas de cá. Pelo menos com aqueles que não deram no pé em direção ao norte do globo à mera menção de um friozinho de zero grau…
Eu não sei se minha memória infantil confere com a realidade, mas a impressão que tenho dos invernos da minha infância sempre foi a de que eles duravam meses. Meses a fio. Uns seis meses, mais ou menos. Lá na fronteira com o Uruguai, onde nasci, o inverno parecia assim, simétrico ao verão, pulando-se estações intermediárias. Mas aquele povo, ainda assim, andava lépido nas ruas, incluso eu.
Atualmente, uma semana ininterrupta de temperaturas abaixo dos dez centígrados seria capaz de me colocar praticamente em estado de hibernação absoluta, caso possível. O fato é que é sabidamente impraticável obter esse paraíso, quero dizer, a hibernação, quando se divide o teto com crianças, especialmente quando o hit do momento colou-se com toda a força na mente incauta de uma menina de nove anos de idade, não por acaso minha própria filha.
Não invoco piedade de ninguém nesse instante que revelo finalmente que estive no cativeiro polar, por quase uma semana – nas férias de julho – ao som de “O Show das Poderosas“, na voz (?) inconfundível (!) de Anitta. Sim, Anitta, a funkeira pop que canta (?!) trajando lingerie estilo sexshop. Porém, como é evidente que sobrevivi para dar este relato, presume-se que outros fatos se interpuseram. Exato. Foram interpostos. Um armistício, digamos assim. Claro que não, isso não é absolutamente sério. Mas não por minha causa, que sou belicoso assumido, mas graças ao Beto Guedes (sim, o cantor mineiro), que trouxe paz a este humilde lar de um modo que quem o conhece sabe que eu não preciso nem dizer mais nada.
Pois o Beto foi cantando as músicas de A Página do Relâmpago Elétrico, de Amor de Índio, dos Contos da Lua Vaga, do Sol de Primavera e de repente nem mesmo o frio intenso das ruas conseguiu mais nos enregelar. Ainda mais com o perfume sempre renovado da cozinha… No inverno, todo o mundo sabe, a gente estoca comida. E usa. Por sorte, em Porto Alegre ainda se encontram boas frutas da estação para contrabalançar as calorias que não são poucas. E quem não descascou bergamotas e laranjas de umbigo no sol do inverno, eu lamento dizer, não pode dizer que é gaúcho de verdade. Nem com foto de cuia na mão. Mesmo assim, apenas se trata de uma substituição dos perfumes. E também dos sons, sobre aquele outro fato…
É claro, e que não reste dúvida disso, que não cometi nenhum tipo de violência ao apresentar a meus filhos as canções que imortalizaram, pelo menos para mim, esse gênio da música brasileira chamado Alberto de Castro Guedes. Até porque (se for o caso, tente comprovar isso também) naturalmente as crianças vão aprender a cantar e a gostar (e sobretudo entender) de cantar até mesmo – ou especialmente – os choros do seu Godofredo Guedes, que o filho Beto gravou magistralmente, em Cantar, Casinha de Palha, etc.
Não me orgulho nem me jacto que meus filhos saibam cantar, por minha clara interferência, canções que um dia fizeram a minha cabeça, até porque aprendi de minha parte – e de livre vontade – toda a letra de “Prepara que agora, é a hora do show das poderosas, que descem e rebolam, afrontam as fogosas só as que incomodam, expulsam as invejosas, que ficam de cara quando toca.” Tá bom, aprendi, mas não entendi, mas isso não conta e, pior, imagino que sequer tenha alguma importância. Jamais fui partidário de doutrinações de qualquer espécie, mas mostrar aos próprios filhos que o mundo é mais que o que é vendido ou empurrado a eles (eles?) está longe de ser um crime. Talvez fosse até um dever, se a maioria dos pais não buscassem muitas vezes nestes o seu próprio rejuvenescimento. Bem, garanto que não é esse o caso. É tudo mais simples, é apenas uma questão de resposta aos estímulos.
Também não seria tolo em pensar que poderia ou teria o poder de impedir o contato de meus filhos com produtos culturais de qualquer qualidade. Penso que isso faz parte do processo cultural normal, nada mais que isso, mas tenho planos na manga, nem que sejam para uso doméstico. Se eu fosse um sujeito calculista, bastaria pensar em quem perde menos, em quem ganha mai s. Aqui em casa, essa é a única matemática que importa. Por isso – e para evitar uma guerra desproporcional – quando quero ouvir um pouco de música eu logo pergunto a eles: vamos ouvir juntos Anitta e Beto Guedes?