Especial

Tire seus olhos verdes de minha filha

Por Lucio Carvalho - 26/11/2013

Estou prestes a cometer a heresia de voltar a falar de Chico Buarque de Hollanda sem tocar no assunto biografias. Penso tanta coisa sobre isso e tenho tão pouca certeza do que penso que, por via das dúvidas, acho quase tudo cabível (e ao mesmo tempo muita coisa condenável). Parece contraditório? Se a vida sabidamente o é, por que diabos a biografia não seria?


Mas meu assunto não é esse. Meu assunto é o Chico e, como se trata dos encantos de uma filha minha para com o sujeito, deveria até dizer que meu assunto é “com” o Chico.
Por muito tempo achei que a razão de todo o seu encanto estava naqueles seus translúcidos olhos verdes, varados de timidez. Ou na voz mansa e relutante. Ou num certo bom mocismo de quem cantava sobre moças nas janelas e detalhes da vida corriqueira das pessoas mais comuns com delicadeza, com boa educação e com um bom gosto indiscutível. Ora, mas isso não seria encantador em qualquer pessoa? É verdade, mas deu o acaso de cair tudo numa pessoa só. Isso pode acontecer e, como sabemos, aconteceu de verdade…


A descrição acima, porque obviamente já tenha passado pela cabeça de inúmeras pessoas deste país, é uma constatação até certo ponto repetitiva. O inesperado, no meu caso, é de que jamais imaginei que esse senhor quase septuagenário (sim, ele é de 1944) pudesse tontear de encanto uma criança de nove anos de idade.
Pois é. Mas o Chico pode. Um dia cheguei em casa e encontrei minha filha em prantos. Embora lá em casa a gente vá aos prantos com certa facilidade, obviamente que fiquei preocupado. O que teria acontecido? Brigou na escola? Tomou uma nota ruim? Puxaram-lhe o cabelo? Afinal, digam de uma vez… Não, se acalme, não é nada disso. Está assim porque esqueceu de uma música linda que ouviu no YouTube, não lembra de quem, nem porquê, nem coisa nenhuma. Só uma melodia em sua pequena boca soprando em meus ouvidos um som melancólico e familiar, com uma letra entrecortada sobre enamorados numa praça. Deus meu, o que pode ser isso? Um vídeo cômico não é. É uma música. A mais bela de todas, cantada numa voz de fada…


Vamos em busca disso, falei. E fomos. Ali de cara, no histórico do navegador, estava a razão definitiva daquele desespero. A razão defintiva e digna de ser. A Valsinha, de Chico e Vinicius cantada pela Mônica Salmaso, fritou o coração e a memória da minha pequena menina.
Como pude não precavê-la de que isso podia um dia acontecer? Falhei como pai, porque pensei em protegê-la destes “terríveis” ídolos teenagers que saem por aí pichando as ruas cercados de guarda-costas, expondo-se ao risco absurdo de fazer alguma coisa de verdade na vida, como esse menino que andou esses dias em tournée no Brasil, o Bieber. Deixei de perceber que a poesia e a música são mais perigosas que tudo. Isso que ela ainda não cresceu o tanto para prestar atenção naqueles velhos olhos verdes…


Para mim, é um espanto real viver essas coisas. E é mais espantoso ainda que a ternura consiga falar mais alto para uma criança que o espetáculo incessante e em alta definição de tudo, oferecido o tempo inteiro aos seus incautos sentidos. E será sempre um espanto que depois de tantos anos eu voltasse a redescobrir a poesia e melodia do Chico pela voz embevecida (e abençoada) de minha pequena filha. E assim como o tesouro é grande, grande será a descoberta. E como isso não vai ser contado em nehuma biografia, fica aqui o registro.