Especial

Talismã: um grande nome do samba paulistano

Por Julio Cesar de Barros* - 29/03/2011

No ano em que a Escola de Samba Camisa Verde e Branco retorna ao grupo principal do Carnaval paulistano, nada melhor para fazer uma homenagem à agremiação da Barra Funda do que falar de um de seus maiores representantes, o compositor Talismã, autor de alguns de seus grandes sambas-enredo e de seu hino.

Talismã nasceu Octávio da Silva, no bairro carioca da Piedade. Violonista, compositor e carnavalesco com prática na confecção de esculturas em papel machê, muito comuns nos carnavais do passado, ele desfilou alguns anos na Unidos de Rocha Miranda, na Zona Norte do Rio. Seu irmão, o jornalista e radialista Edmundo Andrade, era compositor de sambas-sincopados e autor de jingles comerciais e políticos. Convidado por Inocêncio Tobias, o Mulata, presidente e fundador da Camisa Verde e Branco, de São Paulo, em 1967, Talismã mudou-se para São Paulo, onde viveu o resto de sua vida, tendo colaborado como compositor e carnavalesco com diversas escolas da Terra da Garoa, entre elas, a Rosas de Ouro, o Morro da Casa Verde e a Unidos de Vila Maria, além da Camisa, escola da qual é autor do samba-hino Sou Verde e Branco (parceria com Jordão), vencedor do Festival de Samba de Quadra (1974). Na Camisa, logo que chegou à cidade, venceu o samba-enredo de 1968 (Há Um Nome Gravado na História: 13 de Maio) e de 1969, Biografia do Samba, que levou o cordão Camisa Verde e Branco ao título e se tornou o Hino do Samba de São Paulo. Em 1971, venceu novamente o samba-enredo no cordão com Sonho Colorido de Um Pintor (parceria com Benedito Lobo), gravado com sucesso por Tom Zé. Negro Maravilhoso (1982, gravada pelos Originais do Samba) é outro de seus grandes sambas feitos para a verde e branco da Barra Funda. Na Vila Maria compôs um poético samba-enredo que foge a todos os padrões do gênero: Quando Chega a Primavera (1973). Nos anos 70, Talismã participou durante muitas semanas no TBC de um espetáculo de Plínio Marcos que reunia Zeca da Casa Verde, Geraldo Filme e Tuniquinho Batuqueiro. O espetáculo viajou por outras cidades, com Plínio contando “histórias das quebradas do mundaréu” e os sambistas mandando seu recado. O dramaturgo santista conhecia bem o compositor. Em dezembro de 1976 ele escreveu no Folhetim, suplemento cultural da Folha de S. Paulo:

“O Talismã de Rocha Miranda, Seu Mumu pros íntimos, é sem favor nenhum um dos maiores artistas populares do Brasil. Fez de tudo. Poeta de uma pureza rara, compositor de grande sensibilidade, escultor primoroso, que sempre ganha nota dez com os seus carros-alegóricos, tocador de violão, cantor, humorista e tudo mais. Como veio, nem ele sabe explicar direito. Dizem que foi depois de um fracasso que teve no Circo do Dudu, lá no Rio de Janeiro. Anunciaram o Talismã e ele entrou todo cheio de manha, com seu violão. Mas, antes de anunciar a música, a platéia começou a exigir que ele cantasse um jingle do Detefon, que era muito tocado nas rádios. O Talismã não queria. Não tinha nada que ver com o jingle. Mas, a platéia insistia, insistia e, pra evitar que quebrassem o circo, ele cantou. Saiu do espetáculo arrasado. Pegou o ônibus e veio embora. Quando deu por si, estava em São Paulo. Quando deu por si, já estava fazendo samba pro Camisa Verde e Branco. Foi metendo a mão. Quando o Talismã chegou em São Paulo, o forte eram os cordões. Escola de samba saía na base de muita cor, valendo fantasia de toureiro, pirata da perna de pau, jardineiro e dominó. Talismã se assustou. Pensou em ir embora. Mas não foi. Hoje está inteirinho em São Paulo.”

Em 1979, o compositor teve seu samba Meu Sexto Sentido (parceria com Raymundo Prates) gravado no LP No Pagode, de Beth Carvalho, que já nessa época garimpava o samba bom pela Paulicéia, onde no início dos anos 80 chegou a batizar a Rua do Samba, que a Camisa Verde e Branco, escola de Talismã, promovia diante do salão São Paulo Chic, na Rua Brigadeiro Galvão, na Barra Funda. Não precisa dizer que o compositor foi uma das grandes atrações daquele domingo, para delírio das 5 000 pessoas ali reunidas. Foi um momento de consagração do poeta, quando Beth, generosa, o chamou ao palco e cantou seu samba. Ele, todo sem jeito, recolheu os louros da vitória de ser gravado pelo nome maior do samba na época. Talismã era um sujeito tímido, falava baixo e se movia com certa lentidão. Nunca se ouviu sua voz erguer-se em protesto. Até para dar bronca ou reclamar era suave. Sensível, poeta 24 horas por dia, ele amava a natureza, tema recorrente em suas letras. Adorava os animais. Era capaz de ficar triste ao ver um cão vira-latas farejando comida com olhar pidão. Foi com esse coração mole que ele sofreu um baque numa história que para seu desespero virou piada no mundo do samba. Certa vez ele ganhou um pato, o qual criou com carinho, fazendo do bicho seu animalzinho de estimação. O pato o seguia pela casa toda, sempre atrás de sua atenção, carinho e ração. Tinha até nome, a ave. Seu irmão, Edmundo, chegou do Rio com muita fome – tempo de vacas magras – e foi direto para a sua casa, na Zona Norte paulistana. Chegou pensando no almoço, mas encontrou a casa vazia. Boa mão de tempero, Edmundo viu o pato no quintal e logo o apresentou à panela. A tragédia vocês imaginam. Quando Talismã chegou em casa e viu aquela fartura de penas pelo quintal pressentiu o pior. Seu luto durou meses. Anos depois, ele ainda se lembrava do episódio com uma tristeza de dar dó. Talismã era de um lirismo acentuado, capaz de versos derramados, mas capaz também de endurecer o verso, sem perder a poesia, como fez em Sonho Colorido de Um Pintor, ao tingir o amor de cinza escuro, ou nesse samba de dor-de-cotovelo:

És um peso morto desabado em mim
Fardo de que não posso me desvencilhar
És uma aranha e eu caí na tua teia
Minha alma anseia por se libertar

Como o irmão Edmundo, era exímio autor de sambas sincopados e humorosos. Gasolina gravou dos irmãos o samba Escureceu, em 1960. Este samba deu ao cantor Athayde Dias a vitória como intérprete no programa A Grande Chance, de Flávio Cavalcanti, na TV Tupi do Rio, em 1971. Mais tarde, Noite Ilustrada incluiu o samba em um de seus discos. Em 1967, no disco Catedrático do Samba, Germano Mathias gravou da dupla o samba Mania Lírica. De qualquer modo, Talismã gravou pouco para tanto talento. Sua memória se perde nas poucas gravações em discos antigos de catálogos desbotados e nos sambas-enredo que fez para agremiações carnavalescas paulistanas, muitos deles desconhecidos até dos sambistas mais novos dessas entidades. Uma pena e uma perda importante na memória da nossa música em geral e do samba em particular. Talismã morreu num dia qualquer dos anos 90. Praticamente esquecido. Sua morte não foi notícia dos grandes jornais. Não se sabe a data de seu nascimento, nem tampouco o dia de sua morte.

(*Veja.com/Blog Passarela)