Especial

Paulo Emílio, um navegante dos canaviais

Por Tuca Zamagna - 06/02/2012

“Um navio no canavial” é o título do único livro que o poeta e compositor Paulo Emílio (da Costa Leite) escreveu – sem contar “Eu e meu cavalo”, uma série de poemas que ele pretendia ampliar e também transformar em livro. Embora o “Navio” pareça pronto para navegar, ele nunca o deu por terminado. De meados dos anos 70, quando li os originais pela primeira vez, até julho de 90, quando ele os deixou na minha casa ao mudar-se de lá para a praia niteroiense de Piratininga (onde veio a contrair, cinco meses depois, perto do Natal, a doença que o mataria antes do Ano Novo), o único acréscimo feito à obra foi o título, surgido à época (82 a 87) em que o poeta morou em Santa Rosa de Viterbo – SP, principal "porto do mar canavieiro" dos Matarazzo. Mas alguns trechos das dezenas de poemas encadeados que compõem o livro ganharam vida pública, musicados. O melhor exemplo surgiu na letra do samba “Made in Brasil”, com João Bosco, que continha pelo menos um verso de um dos poemas do “Navio”. A música foi feita em 78, especialmente para um show que o compositor mineiro faria no Japão. Não chegou a ser gravada em disco, porque João voltou a trabalhar com Aldir Blanc, e os três fizeram o LP “Linha de passe”, cuja música-título era uma nova versão de “Made in Brasil", acrescida de uma segunda parte letrada por Aldir. A diferença entre os versos dos dois letristas é grande e, para enfatizá-la, confronto trechos feitos por cada um deles com a letra de “Cobra criada” (só do Paulo Emílio com o João), que estilisticamente só tem a ver com a primeira metade de “Linha de Passe”. Senão, vejamos:

Linha de passe / Paulo Emílio: Toca de tatu, lingüiça e paio e boi zebu/ Rabada com angu, rabo-de-saia/ Naco de peru, lombo de porco com tutu/ E bolo de fubá, barriga d'água / Há um diz que tem e no balaio tem também/ Um som bordão bordando o som, dedão, violação (...)
(Em itálico, o verso que provém de um dos poemas de “Um navio no canavial”.)

Linha de passe / Aldir Blanc: Já era Tirolesa, o Garrincha, a Galeria/ A Mayrink Veiga, o Vai-da-Valsa, e hoje em dia/ Rola a bola, é sola, esfola, cola, é pau a pau/ E lá vem Portela que nem Marquês de Pombal/ Mal, isso assim vai mal, mas viva o carnaval/ Lights e sarongs, bondes, louras, King-Kongs/ Meu pirão primeiro é muita marmelada (...)

Cobra criada: Suco de sururucu/ Diga lá jacu/ Cutia comadre/ Posta de pirarucu/ Diga lá caju/ Barata cascuda/ Gruta de viúva negra/ Caranguejeira/ Saúva coruja/ Rastro de jararucu/ Jararacoral/ Piranha calunga/ Diaba de banda retrai/ De carataí/ Traíra de dente de dá/ E cada dentada que dá/ Cascudo cará/ Purus Juruá/ Mordida no maracujá/ De cobra criada no mar/ Chocalha no cadê você/ Sussurra no bote que dá/ Curare de cobra/ Suga e sai/ Picada de cobra/ Amor não dói.

A aventura no “mar dos canaviais”, Paulo Emílio a justificava com o desejo de morar num lugar mais tranqüilo, onde pudesse terminar o livro e cuidar da saúde, debilitada por um princípio de cirrose diagnosticado em 81. Se, como eu já disse, ele não terminou o livro, da saúde ele tratou foi com muita cerveja e pinga, que é impossível ficar sóbrio num lugar apinhado de boêmios “24 horas” e doidos com pós-doutorado. Como se não bastasse, a cidade tem quatro ou cinco botequins por metro quadrado (exagerei: são só três ou quatro!). Eu mesmo, nas mais de dez vezes em que estive em Santa Rosa de Viterbo, só não tomava dois porres por dia quando tomava três. Isso, se não emendasse uma bebedeira na outra para, no mínimo, poder dizer à família e aos amigos abstêmios daqui do Rio que estive em Santa Rosa – durante três semanas, por exemplo – e só tomei um porre!
 

Psicoterapia floral com cheiro de mandioquinha

Chega de falar de Santa Rosa de Viterbo, que esse é um dos capítulos mais longos (se é que tem fim) da vida do Paulo Emílio, e ainda preciso dizer mais três coisinhas sobre ele:

1 – Nunca escrevi nada sobre o Paulo Emílio nesses 21 anos sem ele. Não sei bem o motivo desse silêncio. Talvez se deva ao fato de me bastar manter com ele “conversas” em momentos que não estou entendendo o que se passa comigo. E isso acontece a toda hora... Escrevo agora, suponho, em razão do recente aniversário dele (26 de janeiro), o que soa bem absurdo, como se tivessem se passado vinte anos sem o dia 26 de janeiro.

2 – Não consegui escrever alguns casos do Paulo Emílio que achava essencial contar aqui. Mesmo depois de tanto tempo, relembrá-los me emocionou a ponto de o coração engruvinhar e as mãos travarem. A história que se segue, por exemplo, escrevê-la foi quase um parto natural de quadri ou pentagêmeos.

3 – Num dos piores dias da minha vida, eu estava trabalhando no Bar das Pombas, negócio maluco inventado por alguns amigos que, sensatamente, acabaram desistindo da idéia. Mas o pacóvio aqui foi em frente e o comprou, no início de 78. O bar em si até que ia muito bem: 20 meses após a compra chegávamos àquela fase em que se começa a ter lucro. Mas meus dois sócios estavam de saco cheio e queriam vendê-lo. Minha mulher estava de saco cheio e queria que eu o vendesse. E meus pais, meus amigos, meu cachorro... o mundo inteiro estava de saco cheio do Bar das Pombas. Menos eu, que não tinha um saco para encher: o meu estourara havia meses e, em meio a tanta demanda alheia, não me sobrava tempo nem para arranjar outro saco.

E agora eu estava ali, trabalhando no bar, mas doido para sair correndo, me esconder num canto e chorar com meus botões. Era pouco mais de meia-noite, dois ou três bebuns no balcão e as mesas vazias, os empregados me pressionando para irmos embora e eu querendo manter o horário mínimo que estabelecera para fechar, que era duas da manhã. Sustentava meus escombros apoiando os cotovelos na caixa registradora quando, de repente, pude distinguir lá fora, atravessando a rua escura e deserta em direção ao bar, um ser todo de preto, das botas de cano curto ao chapéu de abas largas. Era a salvação, pensei, porque se não fosse o Hopalong Cassidy ou O Paladino do Oeste, heróis de preto do meu faroeste infantil , só podia ser o Paulo Emílio. E era ele mesmo, o herói do meu faroeste adulto. Entrou, seríssimo, com aqueles olhos penetrantes e perscrutadores cravados nos meus. Não falou comigo, mas com o copeiro: “Duas cervejas, dois copos e dois traçados de conhaque com cinzano. Ah, e diz pro seu chefe que mandei ele fechar logo essa espelunca e ir lá pra minha mesa.” Em menos de um minuto despachei os empregados, baixei a porta corrediça e fui pra mesa dele: a última, uma das seis que ficavam numa área a céu aberto, sob uma amendoeira centenária ou quase. Paulo Emílio gostava dessa mesa por ser a mais discreta e por ficar bem junto ao rio Maracanã, que ladeava o bar em todo o seu comprimento. “É a mais confortável. A gente não precisa correr ao banheiro para vomitar.” Bebemos as duas cervejas, os traçados e depois mais quatro ou cinco cervejas, sem que eu desse um pio sobre o que me afligia. Ele não me deu chance: falou besteira atrás de besteira e quando viu que eu já estava bem melhor, mas muito bêbado (aqueles porres quase instantâneos de quem está mal), falou: “Vamos para casa”. O que significava irmos pra minha casa, porque isso – uma casa pra chamar de sua – ele já não tinha havia alguns anos.

Acordei com o apartamento inundado de cheiro de ensopado de carne com batata baroa (a mandioquinha dos paulistas), um dos pratos que o Paulo Emílio mais gostava de fazer e, sobretudo, o que eu mais gostava de comer. Isso me fez levantar com uma disposição bem rara naquele período. Já me imaginava à mesa devorando o ensopado e falando, com serenidade, tudo que eu não falara de madrugada. Qual o quê! Não falei uma vírgula sequer sobre o assunto com ele. Nem durante o almoço nem jamais. Porque toda a angústia que eu vinha sentindo me pareceu tolice, coisa miúda, ao chegar à sala e me deparar com a mesa que meu amigo acabara de pôr. Toalha branca de linho com guardanapos combinando, panela de barro com o ensopado, travessa de arroz com seis ou sete ovos fritos por cima (iguaria especialíssima para nós dois), garrafa de vinho tinto português e, no centro da mesa, imponente feito uma jarra de cristal da Boêmia, o copo do liquidificador exultando de rosas brancas.
 

• Mais sobre o Paulo Emílio (inclusive músicas, cantadas por Elis, Clara Nunes, e João Bosco) no blog do Tuca, em: http://tucazamagna.blogspot.com/2012/01/um-navio-no-canavial.html