Especial

O show tem que continuar

Por Igor Soares e Luiza Lunardi - 14/12/2020

Domingo, 15 de março de 2020. São cerca de 3 horas da manhã quando a roda de samba do grupo Barbantinho Cheiroso termina no Botequim Vaca Atolada, que ocupa desde 2009 um sobrado na Avenida Gomes Freire, 533, no boêmio bairro carioca da Lapa. Aos poucos, a pequena multidão que sambava feliz desde as 22h30 do dia 14 pelo salão de 50 metros quadrados vai saindo da aglomeração pela única porta do local. Uns aos tropeços de tão bêbados; outros, com a cerveja ainda em punho. Máscaras? Nenhuma. No ar abafado da noite de verão, espirros e tosses altas tomam conta do ambiente, mas ninguém dá muita importância e, no máximo, uma voz grita, brincando: “ó o corona!”
Naquele momento, nenhum dos presentes na noitada pensava na possibilidade da cidade do Rio de Janeiro sem o choro do cavaquinho e o batuque do pandeiro. No dia, o município tinha 24 casos confirmados de Covid-19 e não registrava mortes pela doença. A madrugada de 14 para 15 de março marcou a última vez em que o Vaca Atolada recebeu seu público antes de fechar as portas por sete meses, após acordo entre os governos municipal e estadual decretando a proibição de eventos com público.

Na manhã do dia 15, já descansado da noite anterior, Cláudio Cruz, dono do bar, acordou se sentindo mal. Deixou seus dois cachorros — Lampião e Maria Bonita — em casa, e foi ao hospital confirmar o diagnóstico: coronavírus. Os 31 dias seguintes foram de cama, com cinco idas ao hospital e uma internação. “Fechei no domingo achando que ia abrir na terça, mas, na verdade, foi uma despedida. Fiquei muito mal no hospital depois, e ali percebi o quão séria era a pandemia”, conta. Quando melhorou, após mais de um mês entre altos e baixos da doença, estava 10 quilos mais magro.
O alívio de ter se curado não durou muito tempo. Mesmo de portas fechadas e sem serviço, as contas do estabelecimento continuavam sendo cobradas e os salários dos funcionários, que dependiam do dinheiro para sobreviver, precisavam ser pagos. “A pandemia foi um desastre para o Vaca. Graças a Deus eu tinha uma reserva de dinheiro guardada para o caso de alguma emergência, porém, só deu para segurar dois meses com essa grana, porque é muito caro manter o bar. Só o aluguel é de R$14 mil, mais o que tenho que pagar por 14 funcionários, entre CLT e freelancers. Porque fiz questão de continuar pagando todo mundo, mesmo os que não eram efetivos”, afirma Cláudio. “Tinha um casal, por exemplo, que eu vinha pedindo a carteira deles para assinar há meses, porque estavam trabalhando todos os dias e eu não queria problema com a Justiça do Trabalho. Eles sempre esqueciam de levar a carteira, e eu insistindo, mas aí chegou a pandemia e não tinha assinado. Como que eu ia deixar na mão? Banquei mesmo: conta deles, aluguel, tudo, mas agora parei, pois já estão em condições de correr atrás.”

Com o fim de abril, o segundo mês parado, e também da reserva de dinheiro, o empresário começou a pedir contribuições a amigos e a tentar formas alternativas de arrecadar renda para manter tudo em dia. Fez de tudo: live diretamente do bar reunindo poucos músicos, cartão fidelidade, rifas e vaquinha online. Também negociou contas e, entre o terceiro e sétimo mês sem atividades, conseguiu um desconto de 60% no aluguel do espaço. “Eu me sacrifiquei demais, peguei até dinheiro com amigos que me ofereceram ajuda. Um grupo ofereceu para fazer uma vaquinha virtual, e conseguimos arrecadar R$38 mil líquidos só com isso, mais R$16 mil com o ‘Vaca fiel card’, um dinheiro que ajudou muito e sou muito grato. Mas, mesmo assim, agora a dívida que acumulei nesse tempo está em R$180 mil e não tenho como pagar”, desabafa Cláudio.
Assim que as atividades em bares e espaços com rodas de samba foram autorizadas pela prefeitura, em 5 de outubro, a solução final foi reabrir o Vaca Atolada, com todas as devidas precauções. Foram instalados dispensadores de álcool em gel acionados por pedal na porta, cortina de plástico separando os músicos dos clientes, higienização periódica dos microfones usados e controle de entrada. “Restringi o público e tirei a roda de músicos do meio do salão, coloquei encostados na parede, como se fosse um show, coisa que eu detesto! Foi a maneira que encontrei de fazer a separação, evitando os perdigotos. Descaracterizei o bar, mas sei que estou protegendo a vida das pessoas.”
Apesar de todos os cuidado no retorno, ele conta que o público ainda não voltou. O motivo? A orientação política dos frequentadores do local, que se identifica como um reduto da esquerda carioca. Segundo Cláudio, quem vai ao Vaca tem bastante consciência do que está acontecendo e de todos os perigos envolvidos em ficar num lugar fechado. “Tem muita gente que passa aqui na porta, toma uma cerveja do lado de fora, pede desculpas e diz que só volta depois que tiver uma vacina disponível. Os dias têm sido de prejuízo, na maioria esmagadora dos casos. Eu não culpo quem não quer vir, mas estou tendo que abrir, porque não tem mais como manter fechado”, lamenta.
Passar na porta do bar para tomar uma cervejinha faz parte do plano da cantora, pianista e compositora Eliza Pragana, assídua das rodas antes da pandemia. O que falta é a coragem. “Estou evitando ir a lugares fechados, a não ser que seja necessário. Como o Vaca não tem janelas, isso pesa na decisão. Quero ir tomar uma cerveja na porta em um dia em que algum amigo estiver tocando, só para matar a saudade. Mas estou esperando ver os contágios diminuírem, para eu me sentir à vontade de ir. A graça do Vaca é justamente a muvuca.”

 

“Saio para curtir orando para não pegar o corona”

Há quem se arrisque e tenha voltado à rotina normal de sambista. É o caso da estudante Camila Avelar, que já visitou rodas no Beco do Rato, na Casa Black e em outros pontos da cidade. De acordo com ela, diferentemente do relatado por Cláudio no Vaca Atolada, nos locais onde esteve não sentiu diferenças, em comparação a um momento não-pandêmico. “Os lugares seguem cheios, mas dependendo de onde você está, os garçons usam máscara e protetor facial de acrílico e, se for o caso, quem está na recepção também. Os clientes também chegam de máscara nos locais, mas tiram antes de entrar”, diz. A jovem conta que os meses sem ir ao samba a deixaram deprimida. “No início da quarentena, eu consegui substituir bem pelas lives, não estava tão sacrificante. Mas depois de uns dois meses, comecei a ficar mal de saudades. Conversava com as minhas amigas e todas relatavam o mesmo. Quando chegou agosto [mês em que as rodas ainda estavam proibidas no Rio de Janeiro], decidimos tentar ir a alguma.”
O primeiro momento de reencontro com o samba foi de apreensão. “Ficamos pensando ‘será que a gente se contaminou?’ Mas, depois que vimos que estava tudo bem, perdemos o medo”, afirma. Camila, que admite estar se arriscando ao frequentar aglomerações, diz que as condições dos locais dependem do bom senso de cada um. “Eu acho que as pessoas acreditam — e eu me incluo nisso — que ninguém sai de casa se estiver com algum sintoma. Com isso em mente, você coloca o custo benefício na ponta do lápis e vê o que acha melhor: ou eu fico em casa, ou saio para curtir o meu samba orando pra não pegar corona.”

Questão de responsabilidade

A pandemia também afetou a rotina de outro tradicional abrigo do samba na cidade. No número 50 da Rua Almirante Gonçalves, em Copacabana, as portas do bar Bip Bip continuam fechadas, os freezers desligados, e não se ouve instrumento nenhum. Apesar da liberação de funcionamento pela prefeitura, a última roda continua sendo a do dia 15 de março, domingo, há mais de oito meses atrás. Hoje, o Bip ainda não tem previsão de volta e a principal razão é a falta de condições para o controle de normas de segurança. É que o bar tem cerca de 15 m², o que torna o distanciamento social impraticável, além de muitos dos frequentadores serem idosos e integrantes de grupos de risco do coronavírus.
Para o músico Matias Bidart, responsável pelo Bip desde a morte de Alfredinho — dono anterior e quem instituiu a música no pequeno estabelecimento — em 2019, manter o bar fechado agora é uma questão de responsabilidade. “Não temos como dar segurança aos nossos amigos, aos clientes e nem aos músicos em um espaço tão pequeno, ainda mais sabendo da forma como o vírus se espalha. Dentro do espaço só caberiam três músicos tocando, e aí não dá uma roda! Sem rodas, não teríamos clientes o suficiente para justificar ligar os freezers e gelar bebida para consumo”, explica.


Assim como Cláudio no Vaca Atolada, Matias teve que se virar para manter o pagamento de todas as despesas do Bip durante a pandemia. O arrecadamento do bar antes da crise não se baseava apenas na venda de bebidas, mas também na venda de camisetas, livros e CDs, além do famoso balde, passado entre os clientes para contribuições voluntárias. Então, quando tudo teve de parar, a diferença foi enorme. É certo que, por lá, as contas são menores que no Vaca, uma vez que os únicos funcionários do Bip Bip são o próprio Matias e o rapaz que limpa o local e repõe os freezers. Outro fator de economia é a falta de aluguel, já que Alfredinho era dono do estabelecimento. Em contrapartida, o lucro do bar ajudava a cobrir custos do apartamento do ex-dono, cuidado pelos amigos de Alfredo, além de uma parte ser direcionada a projetos sociais. “Imagina você ter um faturamento que consegue pagar tudo isso e, de repente, nada. Com o bar fechado, além das cervejas empacadas, não podemos passar o balde, ou vender livros, CDs e camisetas para manter os projetos sociais”, descreve.
 Para contornar a situação, em um primeiro momento, Matias divulgou entre clientes antigos a venda de todas as cervejas que estavam ocupando os freezers, pelo mesmo valor cobrado nas rodas, para poder desligar os aparelhos e assim diminuir o valor da conta de luz. A ideia deu certo e mobilizou dezenas de amigos a irem até o bar de forma ordenada em um sábado de sol para recolherem as dúzias de Heinekens, Amstels, Brahmas, Antárticas e Itaipavas geladas. Outra iniciativa foi a vaquinha online com recompensas, de onde arrecadou o suficiente para o sustento do bar até o início do próximo ano. “Com a campanha da vaquinha, deu para segurar mais do que tínhamos calculado que precisaríamos quando lançamos. Na época, não se sabia muito bem da pandemia ainda, e pensávamos em uma hipotética reabertura em outubro, que não aconteceu.”


Enquanto a reabertura não é uma realidade, fotos antigas nas redes sociais do bar, e apresentações virtuais ao vivo semanais no Instagram (de chorinho, às segundas, e samba, às quintas) ajudam a manter os amigos e clientes por perto, mesmo que de longe. Apresentações virtuais extras marcaram datas especiais, como o aniversário de Chico Buarque (19 de junho), de Aldir Blanc (2 de setembro), e de Alfredinho (17 do mesmo mês), chegando a durar mais de 8 horas, com cerca de 300 participantes cada, tal qual aconteceriam fisicamente no bar em tempos sem pandemia.

Efeitos da pandemia na produção cultural

Além de consequências danosas para donos de bares que abrigam as rodas de samba, a pandemia afetou gravemente os astros principais dessa expressão cultural: os músicos. Ricardo Tritany, que comanda o violão 7 cordas no Barbantinho Cheiroso, grupo responsável por agitar as noites do segundo sábado de cada mês no Vaca Atolada desde 2010, diz estar desolado com a situação. “Me sinto como se tivesse ficado órfão da nossa mãe cultura, que sempre foi tão gentil conosco.” Para o músico, o impacto financeiro gerado pela falta de eventos foi notório. “Por mais que o músico que não faça parte de bandas de artistas famosos tenha dois ou três trabalhos por dia, sempre falta alguma quantia para pagar suas contas no final do mês. Então, quando se perde repentinamente um valor já contabilizado e incorporado no orçamento, a situação fica ainda mais difícil”, reconhece.
Mas o aperto de dinheiro não é o suficiente para Ricardo se sentir à vontade para retornar às rodas. Ele alega que, diante dos fatos, não dá para tratar a Covid-19 como uma simples “gripezinha”. “Tive contato com uma pessoa amiga que testou positivo em seguida ao nosso encontro e posso afirmar que toda e qualquer situação de alerta a sintomas da doença é extremamente desconfortável e preocupante; beira o pânico, principalmente para quem faz parte do grupo de risco ou mora com idosos. Não posso representar o grupo Barbantinho Cheiroso e dizer com certeza quando iremos voltar a tocar no Vaca, porém, eu não me sinto seguro para retornar a uma situação de normalidade aparente. Não agora”, relata o músico.
Já a musicista Eliza Pragana, que canta no Botequim Vaca Atolada e no Bar Bip Bip, conta que viu seu rendimento mensal cair muito com a crise gerada pelo coronavírus. “Eu perdi um dinheiro. Dou aula de canto, e ia até a casa das pessoas para ensinar, o que não é mais possível por causa do distanciamento social. Fora o cancelamento das rodas de samba, que eram onde eu me apresentava profissionalmente além das aulas. Agora estou correndo atrás de conseguir o auxílio da Lei Aldir Blanc, mas ainda não fui incluída.”
Para o músico e estudante de Produção Cultural Akil Abbayomi, o valor do auxílio aos trabalhadores do setor não dá conta da realidade financeira de muitos. “O auxílio é irrisório, porque estão completamente fora da realidade dos brasileiros. R$ 600,00 é pouco mais da metade do salário mínimo e a gente sabe quanto está custando o arroz, por exemplo.” Ele vê como “descaso” a falta de suporte do governo com quem sobrevive da área da cultura. A situação atual do país é de reinvenção. “Há muita gente que está buscando outros tipos de trabalho, como escritórios e aplicativos de entrega, porque não há opção.”
No entanto, Akil argumenta que, com a liberação de atividades culturais, essas pessoas ficam expostas à infecção pelo novo coronavírus. “Se esses trabalhadores tivessem opção e suporte decente, não escolheriam trabalhar sob risco”, afirma. Questionado sobre as expectativas para o futuro, ele diz que o cenário é de incerteza. “É um momento muito caótico, não tem como não ter uma expectativa ruim quanto ao futuro. Para um futuro próximo, as perspectivas são desanimadoras, levando em consideração que muitos trabalhadores podem deixar o setor cultural para um trabalho em um escritório.”

No Brasil, os setores cultural e criativo correspondem a 2,61% do Produto Interno Bruto (PIB). Em números, significa que este setor, um dos mais afetados pela crise econômica provocada pela pandemia, movimenta, por ano, pouco mais de R$ 170 bilhões. Dados da pesquisa “Percepção dos impactos da Covid-19 nos setores Cultural e Criativo do Brasil”, realizada por diversas instituições, como a Universidade de São Paulo e o Serviço Social do Comércio (Sesc), mostram que 42% dos trabalhadores culturais ficaram sem renda no início da pandemia.

Das assistências

Na tentativa de frear minimamente os impactos do coronavírus na área, o presidente Jair Bolsonaro sancionou a Lei Aldir Blanc (nº 14.0172020), que disponibiliza recursos para assistência aos trabalhadores do setor cultural.
A Secretaria Especial da Cultura, vinculada ao Ministério do Turismo, liberou R$ 3 bilhões a estados e municípios. Os recursos foram direcionados a programas de auxílio emergencial a trabalhadores do setor. Além deles, casas de cultura e teatro também seriam beneficiadas pelo repasse. Para as pessoas que vivem de cultura, o valor é de três parcelas de R$ 600,00; em caso de mãe chefe de família, a cota vai para R$ 1.200,00 — seguindo o mesmo modelo de distribuição dos auxílios pelo Governo Federal.
Do valor liberado pelo Executivo Federal, o governo do Estado está operacionalizando quase R$ 105 milhões.
No âmbito municipal, a Secretaria de Assistência Social e Direitos Humanos (SMASDH - Rio) distribuiu mais de 350 cestas básicas para músicos das 213 rodas de samba inscritas no Circuito das Rodas de Samba Cariocas.

*Reportagem escrita em 18/11/2020
*No dia 13/12/2020, Claudio Cruz anunciou o encerramento das atividades do Botequim Vaca Atolada, após 11 anos de funcionamento, em decorrência da crise gerada pela pandemia de coronavírus. A última roda de samba ocorre no sábado (19/12).