Especial

O segredo de Arícia Mess

Por Daniel Brazil - 26/10/2011

Quando jovem, me incomodava ouvir que tal canção tinha uma “versão definitiva” na voz do intérprete X. Dava-mea impressão de coisa imutável, petrificada, inalcançável para as gerações seguintes. Um ponto de vista conservador, contra o novo.

Com o tempo, percebi que isso nada mais era que um baita elogio. Não exclui necessariamente a concorrência, mas estabelece um parâmetro, um degrau difícil de alcançar. Depois, mergulhando mais fundo na música brasileira, me rendi ao chavão. Há interpretações irrepetíveis. Aquelas versões ditas definitivas que, por diversas circunstâncias, conciliam a explosão e a prece, a luz e a pedra, o momento e o eterno.

Quem ouve Elizeth Cardoso cantando Barracão de Zinco, acompanhada por Jacob do Bandolim, sabe do que estou falando. Ou Milton cantando San Vicente. Tim Maia imortalizando Azul da Cor do Mar. Melodia e sua Magrelinha. Caetano em Terra. Gil em Domingo do Parque, quem ousa competir? “Gal cantando Balancê”, como diz o verso de Caetano. Ou cantando Folhetim, ou Antonico, ou Vaca Profana. E Elis, cortando os pulsos em Atrás da Porta? Dalva de Oliveira, Vassourinha, Orlando Silva, Luiz Gonzaga, Tonico e Tinoco, Roberto Carlos, Cazuza, Jackson do Pandeiro... E as gravações de Maria Bethânia, tantas vezes definitiva, de Chico Buarque a Raul Seixas? Como ouvir “Um Índio”, depois dela? Nem com o autor...

Pequenos cantores tentam imitar, grandes cantores fogem da comparação e procuram caminho próprio. O risco de cantar um sucesso de Clara Nunes é enorme, em qualquer roda de samba. Quando o resultado é muito bom, ainda é aquém, e sempre será.

Mas algumas vezes a regra falha. O holofote se abre, deixa de existir só um mito sob o halo. Alguns intérpretes loucos/divinos se arriscam, ultrapassam o medo do ridículo e das comparações, e se ombreiam ao “original”. Superar é coisa impossível, convenhamos. Mas que alguém chegue junto é um prêmio, um alento, uma sacudida nos valores estabelecidos.

Não é uma revolução, entenda bem. Quem cantaCartola como se fosse um rap ou um rock pratica uma subversão (sonoridade maliciosa: sub versão). O impacto real é o de quem entra no mesmo terreno sagrado, com as mesmas armas, e duela sem apelações.

Aconteceu comigo algumas vezes, assistir uma “versão definitiva” se esfarelar na minha frente. Gal gravou “Sua Estupidez” para sempre, até que um dia Ná Ozzetti sussurrou de tal forma que transformou a canção. Melodia cantando Cazuza. Ou Célia reconstruindo Adoniran.

Hoje tive outro alumbramento. Arícia Mess ousou se apropriar de Black isBeautiful, canção emblemática de uma época, imortalizada por Elis Regina. A composição dos irmãos Marcos e Paulo Sérgio Valle estourou na época da ditadura, e tinha uma carga simbólica muito grande. Black Panthers, Black Power, toda uma tomada de consciência da negritude que despontava no final dos anos 60, e seria bastante reprimida na década seguinte.

A branca Elis, de forma emocional. incorporou o papel de porta-voz daquele momento. A rua do Ouvidor estava cheio de brancos horríveis (alguns fardados...), e isso precisava mudar. A interpretação bluesy, cheia de glissandos e portamentos, era rasgada, arrepiante.

Arícia Mess não precisa gritar. Num clipe simples e genial, aparece com maquiagem pesada, carnavalesca, quase surreal. Canta de forma sedutora, de olhos fechados, sentindo a melodia na alma. No bis, vai aos poucos limpando a maquiagem. A pelenegra se revela,magnífica, senhora da canção e do direito de querer.

Arícia Mess está lançando um novo CD (Onde Mora o Segredo). Se tiver a qualidade desta canção/clipe, é imperdível.