Especial

O batuque de Celso Viáfora

Por Daniel Brazil - 07/07/2010

O mundo fonográfico brasileiro (e global) tem um lado perverso. Estrangulado pelas mãos férreas do mercado, estimula o surgimento de dezenas de sucessos artificiais, criados em laboratório com a única intenção de gerar lucro rápido, que são logo descartados.

Por outro lado, artistas consistentes (e não conformados com as facilidades radiofônicas) passam muitos anos lançando discos independentes, fazendo shows pelo Brasil, sem atingir as camadas mais largas de consumo. Mesmo que trabalhem com gêneros populares, ficam restritos ao nicho da MPB chique, ao qual o povão não tem acesso. O império da banalidade continua imbatível nas FMs da vida, gerando uma quantidade de lixo musical capaz de entupir todos os Ipods do planeta.

Poderíamos fazer uma surpreendente lista de artistas que, depois de vários anos de carreira, acumulam elogios da crítica, são aplaudidos em pé nos shows – geralmente em salas pequenas -, e jamais tiveram um sucesso cantado pelo povão. Gente boa que, se você sair perguntando por aí, poucos sabem quem é ou conhecem alguma canção.

Celso Viáfora é um desses. Paulista universal, tem um pé no samba e outro na música do mundo. Desde os anos 80 lança discos, faz shows, compõe trilhas para teatro, cria canções antológicas. Letrista inspirado, bom músico, com oito discos de carreira e dezenas de obras gravadas por outros intérpretes, Viáfora segue a sina de outros grandes artistas desconhecidos do grande público.

Seu último CD (e DVD), lançado em 2010, é Batuque de Tudo. Gravado numa fazenda do interior de São Paulo, com dezenas de músicos e participações especiais, traz nomes como Ivan Lins, Quinteto em Branco e Preto, Vicente Barreto, Dani Black e Tatiana Parra. Belém do Pará, cidade onde lançou seu primeiro disco solo e onde mantém vínculos musicais, é representada pelo velho parceiro Nilson Chaves e pelo trio Marari.

Celso Viáfora é um bamba. Este adjetivo, aparentemente tão inocente, só cai bem em músico escolado, rodado, com muita garrafa pra vender. Ninguém chama um estreante de bamba. Ninguém chama um cabra ruim de bamba. Normalmente aplicado a sambistas da velha guarda, aqui o adjetivo ganha conotação ampla. O cara surpreende como só gente grande é capaz de fazer. Tem dúzias de sambas? Tem. Mas também tem toadas, cantigas, valsas, cirandas, batuques, canções de sotaque pop, crônicas musicadas e obras dramáticas.

No último disco há várias canções impressionantes. Não só pelas letras bem construídas e provocativas (“Favelado não é tudo traficante/ Milionário não é tudo prepotente/ Maltrapilho não é tudo meliante/ Elegante não é, necessariamente,/ tudo competente./ Ianque não é tudo imperialista/ Paulista não nasceu tudo na Mooca/ Sambista não é tudo carioca/ Artista não é tudo comunista/ maconheiro e indecente/ Todo mundo é meio assim que nem a gente:/ tudo igual, mas é muito diferente”, Que Nem a Gente), mas também pela extrema habilidade em construir climas densos e contundentes. “Quando Vi Meu Pai Chorar” é quase um rock pesado, não fosse a sutileza do arranjo stacatto que combina guitarra cortante com o vocal articulado, perfeitamente audível. Coisa de quem tem o que dizer, e sabe como.

Celso Viáfora vem, há tempos, esculpindo uma obra capaz de se ombrear com o que há de consagrado por aí. Procure, compre, assista, baixe, ouça e divulgue. O homem está fazendo a melhor música brasileira deste século.