Especial

A letra brasileira de Paulo César Pinheiro

Por Daniel Brazil - 22/06/2009

Para muita gente, Paulo César Pinheiro é o maior letrista do Brasil. Suas mais de 2 mil letras produzidas, com um alto nível assombroso, são suficientes para torná-lo um caso especial da música popular brasileira.

Como descrever a vida de alguém que aos 13 anos criava uma obra-prima como Viagem (com João de Aquino) e que pouco depois virava parceiro de Baden Powell, deixando Vinicius enciumado? O homem pôs versos em composições de Pixinguinha, João Nogueira, Radamés Gnatalli, Tom Jobim, Mauro Duarte, Eduardo Gudin, Wilson das Neves, João Donato, Guinga, Mauricio Tapajós, Dori Caymmi, Francis Hime, Edu Lobo, Theo de Barros, Raphael Rabello, Moacyr Luz, Egberto Gismonti, Sérgio Santos, Joyce, Vicente Barreto, Roque Ferreira, Ivan Lins, Mauricio Carrilho e mais uma lista de novos parceiros que não pára de crescer.

Para encarar essa tarefa monumental a jornalista Conceição Campos empenhou dez anos de trabalho. Vasculhou, catalogou, entrevistou dezenas de pessoas, conviveu com os amigos, percorreu os caminhos, freqüentou os ambientes que marcaram a vida e obra do poeta. E construiu um livro envolvente, narrado com minúcias, cujo estilo se harmoniza com o de seu biografado de maneira inteligente e saborosa.

A Revista Música Brasileira conversou com Conceição sobre o livro, que está sendo lançado em todo o Brasil (A Letra Brasileira de Paulo César Pinheiro, Casa da Palavra, 2009).

RMB - Quando e como surgiu a idéia do livro?

CC - Esse livro começou a se consolidar realmente a partir de 2007, quando consegui o patrocínio da Petrobras, que permitiu que eu me dedicasse exclusivamente a escrevê-lo. Mas a idéia – e o trabalho em torno dessa idéia – nasceu há mais de dez anos quando eu fui apresentada a Paulo César Pinheiro pelo bandolinista Pedro Amorim – parceiro dele com quem eu tinha acabado de me casar. A partir desse contato, eu fui identificando uma forte ligação entre muitas de suas letras – que até então eu não sabia de quem eram – e várias etapas da minha vida. Um tipo de relação ao mesmo tempo íntima e anônima que, depois eu constatei, se estabelece repetidamente entre os versos dos letristas e as histórias cotidianas de seus desavisados ouvintes. Desde o belo tema Pedrinho, do Sítio do Picapau Amarelo, (dele com Dori Caymmi) que eu ouvia menina, lá em Belém, até Saudades da Guanabara (com Aldir Blanc e Moacyr Luz), que eu acabara de usar como hino nos meses difíceis vividos em São Paulo. A lista era interminável. Passava por Pesadelo (dele com Maurício Tapajós) que meu pai-militante ouvia na época da ditadura, por Quaquaraquaquá e Cai dentro (dele com Baden Powell) na voz de Elis Regina, por Menino-Deus e O Canto das três raças (dele com Mauro Duarte) nas gravações antológicas de Clara Nunes, enfim a descoberta era essa: a trilha sonora de todos os meus endereços tinha sido conduzida pelas palavras de Paulo César Pinheiro sem que eu tivesse consciência disso. Intrigada com essa invisibilidade do letrista pra mim, um dia pedi a ele a indicação de um livro onde eu pudesse saber mais sobre a sua obra. Como ele disse que esse livro não existia, eu tomei a decisão de escrever um.

RMB - O livro tem uma divisão de capítulos muito engenhosa. Como você chegou a essa abordagem?

CC - À medida que a pesquisa sobre a obra dele foi progredindo, eu fui tendo a chance de ouvir e de ler letras recém-nascidas, feitas para estilos musicais os mais variados. Umas lindas, líricas, emocionantes. Outras divertidas, malandras, bem cariocas. E foi me chamando atenção a presença da cultura popular brasileira em um número considerável delas, letras que ele fazia para cirandas e caboclinhos do Lenine (que é pernambucano), ou para os reizados do grande violonista João Lyra (que é alagoano), para os congados do compositor Sérgio Santos (que é mineiro), para os sambas-de-roda do Roque Ferreira, para os ijexás do também baiano Edil Pacheco e assim por diante.

Eu conto no livro que, a partir do contato com essa parte da obra dele, fui de tal modo sendo assaltada por um impulso delirante de viagem que, se passasse um cavalo por perto de mim, era capaz de eu montar nele e sair em disparada pra conhecer aquelas coisas todas. Embora não tenha feito exatamente isso, a verdade é que eu comecei a aproveitar qualquer chance de deslocamento pra estabelecer contato com aqueles temas dos quais Paulo César Pinheiro falava tanto. Intrigada, eu comecei a buscar pelas pistas que ele deixava em seus versos, e assim fui parar em Pernambuco, por exemplo, pra ver o maracatu, o cavalo marinho, o caboclinho. Passei também a observar com outro olhar tanto as coisas do Pará quanto as do Rio de Janeiro. Traçando o roteiro boêmio da juventude do letrista, eu acabei descobrindo um Rio de Janeiro encantador, que ia de São Cristóvão ao Leblon, passando por muitos recantos do centro da cidade. Depois fui até a Enseada da Japuíba, em Angra dos Reis, pra conhecer o rancho do seu avô pescador, lugar onde ele despertou para a poesia, ainda bem menino.

Contaminado por esses percursos reais e afetivos, o livro foi se estruturando naturalmente como um caderno de viagem. Uma viagem que, começando na terra do compositor, acabava me conduzindo no rumo da minha própria origem.

RMB - Ao fazer uma leitura cronológica, é possível distinguir fases na obra de Paulo César Pinheiro? Qual a que deu mais trabalho?

CC – Ele tem fases de interesses que sempre voltam, tanto na música quanto na literatura. Eu diria que, como letrista, Paulo César Pinheiro já nasceu maduro (isso está demonstrado logo em Viagem, escrita por ele aos 13 anos). Só no seu primeiro livro de poemas (Canto brasileiro, 1976) ainda se percebe a busca por uma linguagem própria, logo amadurecida nos livros seguintes. Décadas mais tarde, ao escrever os belos poemas do livro Atabaques, violas e bambus, Paulo César Pinheiro mergulhou de forma tão certeira naquele universo africano e indígena, que a Luciana (Rabello, sua esposa) brincava dizendo que ele estava incorporado. Eu poderia até dizer que, por conta do vocabulário muito específico, essa fase “deu trabalho”, mas era uma dificuldade instigante e logo superada pelo ritmo que vinha junto, o encadeamento dos versos. Então o prazer da leitura se estabelecia de imediato. A sua poesia é muito rica de música, e vice-versa.

RMB - É comum lermos biografias de compositores com a obra acabada, consolidada. Paulinho não pára de compor, até hoje. Imagino que enquanto você escrevia o livro, ele deve ter acrescentado mais algumas dúzias de composições ao acervo. Isso não é meio desanimador para quem quer analisar um conjunto de obras?

CC - É e não é. Quando eu disse a ele, em 1995, que queria escrever um livro sobre a sua obra, ele sorriu me prevenindo: É muita coisa... Em pouco tempo, perdida entre as estantes empoeiradas de lojas de vinil, discotecas de rádios (a Rádio Nacional no Rio, a Rádio Cultura de São Paulo) e inúmeras discotecas particulares, eu entendi exatamente do que é que ele estava falando. Era muita coisa mesmo. No livro estão contabilizadas mais de duas mil letras feitas com mais de 100 parceiros, metade das quais gravadas por mais de 500 intérpretes, desde Elis Regina, Elizeth Cardoso, Clara Nunes, Nana Caymmi, MPB-4, Roberto Ribeiro, Amélia Rabello, Paulinho da Viola, Elba Ramalho, até Renato Braz, Mônica Salmaso. É uma lista interminável, porque está sempre crescendo. Tenho orgulho de ter enfrentado esse desafio porque o resultado de todo esse esforço diz para o leitor com toda clareza: há muita coisa boa sendo continuamente criada e, no meio desse oceano musical brasileiro, a arte de Paulo César Pinheiro tem sido um farol poderoso.

RMB - Paulinho, como é conhecido, também escreve crônicas, peças de teatro, artigos. Você mostrava a ele partes do livro, enquanto escrevia? Ele interferiu no resultado final?

CC – O respeito dele pelo espaço do outro é tão grande que quem ainda não estiver bem seguro do que quer fazer pode facilmente confundir sua postura quieta com frieza. Isso aconteceu comigo no começo, quando ele me observava muito mais do que falava, quase uma esfinge no deserto. Em compensação, se você resiste a essa primeira impressão e segue o seu caminho com sinceridade, vai ter nele um interlocutor muito franco também, disposto a ajudar no que for preciso. Desde que você diga o que quer, pois ele não se antecipa, não pensa pelo outro. Quando entendi isso eu gostei demais. Ele jamais interferiu no meu trabalho e eu só mostrei a ele os capítulos quando sabia que estavam realmente prontos. No final de tudo, ao ouvir suas palavras tão positivas e vibrantes, aí eu fiquei satisfeita, pois sabia que não era confete. Ele tinha gostado verdadeiramente do livro.

RMB – Você pretende continuar pesquisando a música popular? Tem outro projeto em vista?

CC – Esse livro sobre o Paulo César Pinheiro foi um projeto especial, único pra mim. Embora perceba muitos compositores importantes que merecem biografias, não me imagino como biógrafa profissional, pelo menos não no momento. Minha vontade agora é terminar de escrever uma série de contos de assombrações amazônicas que comecei há algum tempo. São seis histórias de pequenos medos fabulosos, mistérios diários que moram na vida da gente. Histórias para serem lidas à noite, por crianças e adultos, de preferência à luz de um candeeiro.