Especial

Lenine – Chão quente do Nordeste

Por Lidia Pena - 10/06/2014

O Nordeste brasileiro é um celeiro de deliciosos frutos que se espalham na farta árvore cultural do país. De lá saíram os escritores Jorge Amado e Ariano Suassuna, o compositor Dorival Caymmi e o poeta João Cabral de Mello Neto, para citar apenas quatro dos grandes exemplos das artes verde-amarelas. E da região veio também Lenine, compositor, cantor, produtor musical e arranjador, que completou 30 anos de carreira em 2013. Ele ocupa a cadeira 38 da Academia Pernambucana de Letras e integra o primeiro escalão da Música Popular Brasileira.

Oswaldo Lenine Macedo Pimentel, conhecido simplesmente por Lenine no Brasil e no mundo, assina dez elogiados álbuns musicais e já abocanhou cinco prêmios Grammy Latino; dois prêmios da Associação Paulista de Críticos de Arte – APCA e nove prêmios de Música Brasileira. Participou dos maiores festivais de música do mundo, como o de Roskilde, na Dinamarca e o de Montreal, no Canadá. Com agenda sempre cheia, ele atua em várias frentes, mantém o sorriso e a simpatia somados ao corpo magro e o jeito alternativo de ser, que não indicam os 55 anos de vida.

A aterrissagem no Rio de Janeiro se deu no final dos anos 1970, e na bagagem ele trazia o refinado gosto musical apoiado em canções napolitanas, música alemã, música folclórica russa, Glenn Miller, Tchaikovsky, Chopin, Gil Evans e, mais tarde, Hermeto Pascoal e os tropicalistas que escutava aos domingos em sua casa. A casa onde a mãe, católica praticante, levava ele e os irmãos à missa enquanto o pai, um velho comunista, fazia de Marx leitura obrigatória. Daí a escolha do nome do compositor.
A capital de Pernambuco e a Cidade Maravilhosa se igualam no encontro de sol e mar, boa música e na alegria do carnaval. Assim, não foi muito difícil para o rapaz nordestino se adaptar à vida carioca, como tampouco demorou a seduzir a sua nova cidade. Morando com amigos compositores, começou a fazer sambas para um dos mais badalados blocos do carnaval de rua da Zona Sul da cidade, o “Suvaco do Cristo”, no Jardim Botânico. E que sambas! Foram anos seguidos de desfile ao som das letras divertidas de Lenine, ao lado de parceiros como Lula Queiroga, Mu Chebabi e Bráulio Tavares, que misturavam amor e críticas sociais na maior sintonia.

A parceria dos sambas de blocos já se mantinha num circuito alternativo até estourar em grandes sucessos da MPB. Ficava para trás o adolescente roqueiro que aos 17 anos, ainda em Recife, arriscara as primeiras composições. Em 1983, com Lula Queiroga, Lenine dividiu “Baque Solto”, seu primeiro LP. Com Mu Chebabi, e também Caxa Aragão, compôs, entre outras, uma de suas músicas mais cantadas pelos fãs: “Hoje eu quero sair só”, faixa de “O dia em que faremos contato”/1997, seu primeiro álbum solo e Prêmio Sharp Revelação. No mesmo álbum, outra faixa, de Lenine e Queiroga, “A ponte”, mereceu o Prêmio Sharp de Melhor Canção.
Antes disso, em 1993, foi lançado Olho de Peixe, considerado pelo artista seu disco mais importante. Na companhia do percussionista Marcos Suzano, ele foi apresentado ao mundo. Depois, Na pressão/1999 vendeu mais de 40 mil cópias só na França e foi considerado o Melhor Álbum de Música Popular Brasileira. Nele se encontra a bela “Paciência”, de Lenine e Dudu Falcão. Novos sucessos foram acontecendo como Falange Canibal/2002 – Grammy Latino de Melhor Álbum Pop Contemporâneo Brasileiro -, Acústico MTV/2006 e Labiata/2008, cuja música Martelo Bigorna mereceu o Grammy Latino de Melhor Canção Brasileira.

Em 2004, Lenine fez bonito em Paris, no projeto”Carte Blanche”, na Cité de La Musique. Segundo brasileiro a ser convidado, antes dele somente Caetano Veloso, deu as cartas ao lado da artista cubana Yusa e do percussionista argentino Ramiro Muscotto. O CD/DVD Lenine Incité ganhou o Grammy Latino de Melhor CD de Música Contemporânea e a música “Ninguém faz Ideia”, de sua autoria e Ivan Santos, levou o Grammy de Melhor Canção. O trabalho ainda mereceu quatro prêmios de Música Brasileira (melhores CD, música, cantor e cantor por voto popular).


Lenine tem participações em trabalhos de outros artistas consagrados como Maria Betânia, Carlos Malta e Elba Ramalho. A recíproca é verdadeira e a própria Betânia, Milton Nascimento e Gilberto Gil, por exemplo, já gravaram suas músicas. Elba foi inclusive a primeira cantora de sucesso nacional a gravar uma composição sua (com Bráulio Tavares), “Roda do Tempo”, que está no álbum Labiata.

Agora é a vez de “Chão”, gravado em 2011, considerado pela crítica a "porção de verdadeira ousadia" do palco Sunset, e um dos espetáculos mais inovadores do último Rock in Rio, realizado em setembro de 2013. É também o nome de uma das faixas, outra bonita parceria com Lula Queiroga. Lenine segue sua trilha em 2014 para mais uma rodada de apresentações, pelo Brasil e pelo mundo, do seu último trabalho.

Desde o lançamento da turnê, mais de 70 cidades foram percorridas do Sul ao extremo Norte do Brasil, além de Alemanha, Argentina, Chile, França, Itália, Holanda, Portugal e Uruguai. Em 2013 - em comemoração aos 30 anos de carreira – realizaram-se 30 projetos especiais diferentes, entre reedições de shows clássicos como “Olho de Peixe” e “Baque Solto”, espetáculos ao lado da Martin Fondse Orchestra (Holanda), Orquestra Sinfônica Brasileira, a série de shows “Inusitado - Projeto Cantautores”, na Cidade das Artes, no Rio de Janeiro, e uma expedição ao lendário Monte Roraima, levando “Chão” ao Extremo Norte do Brasil.

Regado a experimentações sonoras, “Chão” quebrou paradigmas e provou que o popular e o conceitual podem render uma combinação perfeita, lotando teatros e praças públicas, formando e renovando plateias de todos os gostos, cores e idiomas. Aqui cabe uma observação: Lenine identifica no público italiano a mesma “emoção à flor da pele”, a mesma “passionalidade” que encontra nos brasileiros. “Somos todos latinos e essa mesma base nos aproxima e faz com que minhas letras sejam mais compreendidas”, acredita.

Para o artista, levar “Chão” ao palco é mais do que simplesmente tocar as canções do álbum. A ideia é ambientar o espaço com os sons como o canto do canário belga, batizado Frederico VI, o ruído ensurdecedor das cigarras no verão da Urca, o bucólico bairro em que mora no Rio de Janeiro, a agoniada derrubada de uma árvore por uma motosserra, entre outros. Uma evidente opção estética embala dez músicas inéditas, imersas na delicada intimidade de ruídos sem edição.

O espetáculo traz na produção e na guitarra Bruno Giorgi, filho do meio do artista, que também compõe e produz o grupo Casuarina do irmão mais velho, João Cavalcanti (um grande sucesso nas noites cariocas). Outro produtor conceituado do décimo álbum de carreira é o guitarrista JR Tostoi e o próprio Lenine. “No início, havia apenas a palavra e meu principal significado de chão: tudo aquilo que me sustenta. Chão, quase onomatopeia do andar – que soa nasal, reverbera no corpo todo. É pessoal, passional e intransferível” – explica Lenine como surgiu a inspiração para o nome do disco e, consequentemente, da turnê.

Sem jamais se distanciar das raízes, todos os anos participa do carnaval do Recife cantando e brincando. Na abertura oficial da festa deste ano, em fevereiro, esteve no show com repertório de Antônio Nóbrega (violinista e artista popular pernambucano), homenageado na folia em 2014. No dia 1º de março, também no Marco Zero, o principal espaço cultural da cidade, apresentou seu show especial de carnaval, que celebrou o saudoso sanfoneiro Dominguinhos.

Em família os acordes prosseguem extremamente harmoniosos. Lenine é casado há 35 anos com a produtora de TV, Anna Barroso e pai de Bernardo (19), além de Bruno (25) e João (33). O caçula também já entrou no circuito e tem uma banda. A música e o talento são marcas evidentes do clã.


Música e sustentabilidade numa só nota
Sempre alinhado às boas causas, Lenine está desde março na estrada para encontros com comunidades, gestores e técnicos de doze projetos socioambientais espalhados no Brasil. "A arte é um instrumento de aproximação poderoso por uma sociedade mais justa, gosto de acreditar que a minha música vai além do que meramente canto", afirma o artista, que também é botânico autodidata, colecionador de orquídeas (ou "orquidoido", como prefere definir) e apoiador engajado de grupos de preservação ambiental.
Os “Encontros Socioambientais com Lenine”, patrocinados pela estatal brasileira Petrobras, percorrem as cinco regiões do país, começando pelo projeto “Floresta Sustentável” na Bahia. As próximas paradas serão: “Comunidade Produção e Renda” no Maranhão, “Caranguejo Uçá”, Rio de Janeiro, “Pé de Pincha”, Amazonas, “Orquestra Jovem de Contagem”, Minas Gerais, “Pesca Solidária”, Ceará, “Meros”, Espírito Santo, “Tênis e Cidadania”, Rio Grande do Sul, “Mantas do Brasil”, São Paulo; “Cerrado Vivo”, Goiás, “Bichos do Pantanal”, Mato Grosso, “Gestão Indígena”, Acre.
São dois dias de ações em cada destino. No primeiro, o cantor conhece a história dos vários projetos da região, assim como seus representantes e parceiros locais. O segundo dia é de celebração com as comunidades em um show gratuito onde Lenine revisita seu repertório de maneira intimista, no formato voz e violão. “É a oportunidade de conhecer a canção despida e sem subterfúgios, da maneira como foi concebida”, avalia.
A primeira expedição socioambiental de Lenine tem precedentes. O compositor é colaborador de grupos como o Witness (ao lado do músico e defensor dos direitos humanos Peter Gabriel), Rain Forest Alliance, SOS Mata Atlântica, WWF - World Wide Fund for Nature, Projeto Albatroz Brasil, Orquestra Sinfônica Heliópolis, campanha Ser Diferente é Normal, do Instituto Metasocial (em apoio aos portadores da Síndrome de Down), e o Tamar - Projeto de proteção às tartarugas marinhas.
A música pelo social
A luta por uma vida melhor para todos está mesmo no sangue. Lenine diz que as pessoas são a sua maior motivação e cita a relação com o diretor presidente do Movimento Pró-Criança da Arquidiocese de Olinda e Recife: “Com o Sebastião Campello, por exemplo, já são 20 anos de admiração e parceria. Eu fiz parte do Movimento Pró-Criança, e hoje eles são homenageados pela ONU e pelo Governo Brasileiro entre as instituições nacionais que mais vêm contribuindo para os objetivos de desenvolvimento do milênio”. Recentemente participou também das comemorações pelos 40 anos da Coordenadoria Ecumênica de Serviço, em Salvador, capital da Bahia. O Cese apoia projetos de organizações populares em todo o país e já contribuiu para melhorar a vida de aproximadamente 9,5 milhões de pessoas.
Desde as primeiras composições, as questões sociais e ambientais estão presentes. Em Na Pressão tem “Relampiano” (Cadê neném? Tá vendendo drops no sinal pra alguém) e “Rua da Passagem” (Todo mundo tem direito a vida / Todo mundo tem direito igual). E só no disco Olho de Peixe há três referências ao ambiente: "O último por do sol" (A onda ainda quebra na praia / Espumas se misturam com o vento), "Miragem do porto" e "A gandaia das ondas".

O trabalho não pára

Envolvido com música até o último fio dos longos cabelos, Lenine atuou na produção dos CDs /DVDs de outros músicos: "Segundo", de Maria Rita; "De uns tempos pra cá", de Chico César; "Lonji", de Tcheka (cantor e compositor do Cabo Verde); e "Ponto Enredo", de Pedro Luís e a Parede. Trabalhou em televisão com os diretores Guel Arraes e Jorge Furtado na direção musical de "Caramuru, a Invenção do Brasil", minissérie exibida pela TV Globo que virou um longa-metragem. Participou também da direção do musical "Cambaio", de João Falcão e Adriana Falcão, baseado em canções de Chico Buarque e Edu Lobo. Ainda na mesma emissora, assinou sucessos em trilhas sonoras de novelas que explodiram em audiência. Sítio do Picapau Amarelo (infantil), América, O Clone e Caminho das Índias (cuja música Martelo Bigorna fez jus ao Grammy) são alguns exemplos.
Perguntado de onde vem o maior prazer em sua vida profissional, a resposta não surpreende. “O grande prazer vem de um bom desafio! Adoro carnaval, samba. Encomendas de canções para personagens em filmes e em televisão são como vestir a vida de outra pessoa para criar e, como compositor, serei sempre um cronista do que vejo e do que estou vivendo e sentindo”.
Um gostoso desafio tem sido a apresentação com orquestras como a “Sinfônica de Heliópolis, que reúne músicos da comunidade humilde residente na periferia de São Paulo. Ou a “Orquestra Jovem das Gerais”, com sede na cidade de Contagem, em Minas Gerais, cujo projeto visa unir aprendizado musical e cidadania também priorizando os moradores das áreas mais carentes. “São novos caminhos para que a música cumpra cada vez mais seu papel de formação humana e de transformação social”, aplaude Lenine.

Uma ponte no caminho de 2014
Um dos marcos da relação histórica entre Brasil e Holanda é a ponte Maurício de Nassau, em Recife, uma réplica perfeita da ponte sobre o rio Amstel, em Amsterdã. (Em 1630 os holandeses entraram no Brasil por Pernambuco e o príncipe Nassau foi enviado para governar as terras conquistadas). Esta foi a deixa para a criação do show “The Bridge” (A Ponte), que reúne Lenine e a orquestra do maestro holandês Martin Fondse, um dos projetos especiais que celebraram os 30 anos de carreira.
Ambos nascidos em uma ilha, Lenine e Martin Fondse atravessam uma ponte transatlântica, que “não é para ir nem pra voltar, a ponte é somente pra atravessar, caminhar sobre as águas desse momento”, como diz a canção, de Lenine e Lula Queiroga, que inspirou o conceito do show, eleito um dos melhores concertos da história do Music Meeting Festival, realizado na Holanda.
A turnê vitoriosa que já passou pela Alemanha, Holanda, Portugal e várias cidades brasileiras estará em Nova York, no dia 19 de julho próximo, no Summer Stage Festival, no Central Park. Outras apresentações dentro e fora do Brasil ainda serão definidas este ano.

É assim com muito fôlego e consciência que o inquieto Lenine segue a vida. Seria possível defini-lo numa frase ou sentimento?
“Gosto muito do que faço e só faço o que gosto. Sou uma pessoa feliz!”
Não há como duvidar. Graças a todos os deuses!

Texto publicado originalmente na Revista Sarapegbe, Ano 3, Nº 9