Especial

Ivone Lara, a dama do samba

Por Julio Cesar de Barros - 01/10/2010

(Veja.com/Blog Passarela)

Ivone Lara e Délcio Carvalho lançaram no dia 28 de setembro de 2010, no Teatro Carlos Gomes, na Praça Tiradentes, no centro do Rio, o CD Bodas de Coral no Samba Brasileiro, com sucessos da dupla e sambas inéditos, em comemoração aos 35 anos de parceria. O disco, gravado em março de 2008, num show no Teatro Municipal de Niterói, teve tiragem limitada e não foi colocado à venda em lojas, quem pagou pelo ingresso teve direito a um raro exemplar. Este foi só mais um evento na carreira exuberante dessa compositora que começou tarde na profissão, mas muito cedo na arte.

Ivone Lara sempre foi uma mulher de sorriso fácil e personalidade cativante, cuja vida foi cercada de música. Bisneta de escravos, ela nasceu no dia 13 de abril de 1921, em Botafogo, no Rio de Janeiro, um bairro no qual já havia uma certa mistura de classes sociais. O pai, João da Silva Lara, era um carnavalesco e músico respeitado no lugar, tocava violão de sete cordas e desfilava no Bloco dos Africanos e outros ranchos. A mãe, Emerentina Bento da Silva, era pastora do Rancho Flor do Abacate e uma cantora de prestígio no meio dos foliões. Mas para ganhar a vida enfrentava no tanque uma pilha de roupas e ainda costurava. Aos três anos, Ivone perdeu o pai, que só tinha 27, num acidente com o caminhão no qual trabalhava como ajudante. A mãe estava grávida de sua irmã Elza, que nasceu seis meses depois. Emerentina se casou de novo e teve dois meninos, Nilo e Valdir, já falecidos. Órfã de pai, Ivone foi morar na Tijuca, com a mãe, a irmã, o padrasto e os filhos deste segundo casamento. Viveu oito anos no internato do Colégio Municipal Orsina da Fonseca, uma instituição onde o rigor se juntava à eficiência na educação de moças de variadas origens sociais. Lá, estudou música com Lucília, mulher de Heitor Villa-Lobos. “Fiz o primário e o anexo, que corresponde hoje ao segundo grau, numa escola mantida pela prefeitura. Foi uma ótima experiência”, disse. Chegou a cantar sob a regência do maestro, na Rádio Tupi, quando participava do Orfeão dos Apiacás. Ivone tinha 17 anos quando sua mãe morreu, aos 33. Ela saiu do colégio, já maior de idade, foi morar no subúrbio de Inhaúma com um tio chorão, Dionísio, com quem aprendeu a tocar cavaquinho. “Ele era muito amigo do Jacob do Bandolim e do Cândido Pereira da Silva. Eu assistia às reuniões de choro promovidas por eles”.

O colégio fez diferença na sua formação. Aprendeu a transitar com naturalidade entre as diversas camadas da população, desenvolveu um espírito independente, propiciado pela distância da família, e tomou seu destino nas mãos. Foi lá também que teve formação musical erudita, que acabou mesclando com o tanto que aprendeu com os seus no ambiente familiar. Mas Ivone estava decidida a ser independente de verdade e prestou concurso para a Escola Técnica de Enfermagem e passou. “Queria estudar, mas não tinha condições financeiras. Inscrevi-me e tive a felicidade de passar entre os dez primeiros. Isso me deu direito a estudar, morar na escola, e ainda a uma ajuda de custo de 60 000 réis. Naquela época era muito dinheiro”.
Filha, prima e sobrinha de músicos, sua vida no samba não foi fácil. A começar pelos parentes, que não lhe davam moleza. “Eu estava estudando e a pessoa que me criava não queria que eu me perdesse, que me metesse nesse meio (do samba). Achava que eu tinha que escolher uma coisa ou outra. Mas como gostava de fazer os meus versos e minhas músicas, eu passava para ele e ele apresentava como se fossem dele. Naquela época, eu não freqüentava a escola de samba”, contou Ivone ao site Universia, provavelmente se referindo aos primos, filhos de Dionísio, Hélio e Antonio (Mestre Fuleiro), que cantavam seus sambas como se fossem deles. Mas com a maioridade tudo mudou. Em 1945, se mudou para Madureira e casou-se com Oscar Costa, filho do presidente da escola Prazer da Serrinha, embrião da Império Serrano. Além de sambista, o sogro era pai de santo. Ivone mergulhou no mundo da cultura negra, frequentou o jongo, conheceu as religiões de origem africana e deu espaço ao seu talento nos terreiros de samba. Acabou por compor sambas para a escola (Nasci para Sofrer, 1947) e se impôs nas rodas de partido-alto.

Mas seus primeiros sambas foram apresentados no terreiro como sendo do primo Fuleiro, que aos poucos revelou a verdadeira identidade da autora e intercedeu para que ela fosse aceita num meio notadamente masculino. Ivone Lara, que começara a desfilar na ala das baianas, foi então a primeira mulher a integrar uma ala de compositores. “À vezes estou dormindo e a melodia me surge no sonho. Ligo o gravador e canto, deixo lá registrado. É um dom que Deus me deu. A música chega para mim como um presente”, diz ela de sua vocação para a música. Em Madureira conheceu Silas de Oliveira e Mano Décio da Viola, seus futuros parceiros da Império Serrano, onde venceu o concurso para o samba-enredo de 1965, com Os Cinco Bailes da História do Rio (com Silas e Bacalhau). Este samba é frequentemente incluído no rol dos mais belos de todos os tempos. Mas, apesar de sua voz de pastora e um jeito de cantar que ficou perdido nos carnavais do passado, quando o samba era levado na garganta em meio à batucada, Ivone Lara acabou por se tornar uma profissional de saúde e mãe de família dedicada, que só foi se entregar mais seriamente à carreira musical depois de se aposentar como enfermeira e assistente social, outra de suas formações.

Ivone encarava a carreira profissional na área de saúde como uma coisa sagrada, quase tão sagrada como seus compromissos familiares. Motivo de orgulho foi seu trabalho como auxiliar de Nise da Silveira, a médica que usava a arte como coadjuvante importante no tratamento dos doentes mentais. Apesar de Tiê, um de seus sucessos, ter sido composto quando ela tinha apenas 12 anos, o samba era para as horas de lazer, os finais de semana. Razão pela qual só gravou aos 56 anos de idade, no LP O Botequim da Pesada, produzido por Sargenteli, com vários artistas, entre eles Roberto Ribeiro, seu colega de Império Serrano. O primeiro álbum de carreira surgiu em 1974, Samba, minha verdade, minha raiz. Seguiu-se uma dezena de outros trabalhos, com destaque para os discos Sorriso de Criança (1979), Sorriso Negro (1982), Ivone Lara (1985), Bodas de Ouro (1997), que comemorou os 50 anos de carreira como compositora e Nasci Para Sonhar e Cantar (2002), que lhe valeu o Prêmio Caras, de melhor disco do ano. A música daria título a um mestrado em Antropologia Social de autoria de Mila Burns, cujo subtítulo era Dona Ivone Lara: a mulher no samba. Em 2010, o já citado Bodas de Coral no Samba Brasileiro, com cinco músicas inéditas CD comemorativo dos 35 anos de sua parceria com Délcio Carvalho, num lançamento patrocinado pela fábdrica de cosméticos Natura, que patrocinou uma tiragem de três mil discos, não vendidos em loja.
Em 2002 ela ganhou também o Prêmio Shell de MPB, pelo conjunto da obra, e foi recepcionada com uma grande festa, no Canecão, no Rio de Janeiro. Em Bodas de Ouro Ivone reuniu várias gerações de cantores para compartilhar o bolo. Samba de Roda pra Salvador teve uma discreta participação de Gilberto Gil, numa homenagem à Bahia que seguia com Danilo Caymmi (Oração da Mãe Menininha) e a banda Ara Ketu (Alguém Me Avisou). Na ala carioca, estavam os sambistas Martinho da Vila, Zeca Pagodinho e Almir Guineto, além de Beth Carvalho, em Força da Imaginação, um belo partido-alto que canta a esperança. A juventude esteve presente na voz do reggae de Toni Garrido, então cantor da banda Cidade Negra. Foi um momento de consagração da compositora e cantora que cravou sucessos na voz de intérpretes como Martinho da Vila, Clara Nunes, Elizeth Cardoso, Caetano e Maria Bethânia. Ivone compôs melodias que são conhecidas e cantaroladas de norte a sul do país. É o caso de Alguém Me Avisou:

Eu vim de lá, eu vim de lá pequenininho
Eu vim de lá pequenininho
Alguém me avisou
Pra pisar nesse chão devaraginho

Com Délcio Carvalho, seu parceiro mais constante, fez Acreditar, sucesso nos anos 70 na voz do imperiano Roberto Ribeiro. Elizeth Cardoso gravou dos dois Minha Verdade. Em 1978, Bethânia incluiu em seu LP Álibi aquele que foi um de seus maiores sucessos, o samba Sonho Meu, também com Délcio, que lhes valeu o prêmio Sharp de Melhor Música. Com Jorge Aragão ela fez Enredo do Meu Samba, megassucesso na voz de Alcione, e Tendência, sucesso com o próprio Aragão. Os anos 80 a encontraram em plena atividade, fazendo shows por toda parte. Sempre muito solicitada. “Nos anos 1980, eu me apresentei no Teatro Opinião (depois Arena). Ficava em Copacabana e era muito freqüentado por turistas. Fazia shows também na Pujol. No Opinião, me apresentei com vários artistas, Leci Brandão, Roberto Ribeiro, entre outros. Foram mais ou menos 14 anos, sempre fazendo roda de samba. Fiquei conhecida por empresários estrangeiros que me levaram para o exterior para fazer shows”. Ivone se referia certamente à Noitada de Samba, que no final da década de 70 promovia no Opinião o encontro de nomes como Xangô da Mangueira, Cartola, Nelson Cavaquinho, Martinho da Vila, Rosinha Valença, Paulinho da Viola, Clementina de Jesus, Clara Nunes, Beth Carvalho, Guilherme de Brito, Elton Medeiros, Baianinho, Délcio Carvalho e muitos outros nomes consagrados.

Muitos foram seus parceiros de renome, entre eles Mano Décio da Viola (Agradeço a Deus); Hermínio Bello de Carvalho (Mas Quem Disse que Eu Te Esqueço); Paulo César Pinheiro (Bodas de Ouro); Caetano Veloso (Força da Imaginação); Nelson Sargento (Nas Asas da Canção). Em dois depoimentos no Museu da Imagem e do Som, em 1978 e 2008, Ivone Lara contou sua linda trajetória musical e de vida. Uma vida para a qual se preparou com independência e muito sofrimento. À perda prematura dos pais, somou-se a perda do marido, em 1975, mesmo ano em que seu filho sofreu um acidente grave, quando seu carro caiu do elevado da avenida Perimetral, no Rio, causando-lhe graves sequelas.
Sempre ativa, em 2009 gravou ao vivo o DVD Canto de Rainha:“Pra mim foi uma surpresa muito grande. Não esperava gravar mais nada depois de tanto tempo de dedicação à música”, disse ela, que reuniu seus intérpretes e amigos para participar das gravações. Gente como Caetano Veloso, Beth Carvalho, Délcio Carvalho, Jorge Aragão, Arlindo Cruz, Gilberto Gil e Zeca Pagodinho. Em 2010, ela foi homenageada no 21º Prêmio de Música Brasileira (antigo Sharp). Na noite de premiação, depois da entrega dos mimos aos vencedores, Ivone recebeu homenagem de colegas de profissão, que a reverenciaram com palavras e, principalmente, cantando suas músicas. Seus sucessos foram cantados por Caetano Veloso (Acreditar), Roberta Sá (Cansei de Esperar Você), Arlindo Cruz (Canto de Rainha), Lenine (Alguém me Avisou), Délcio Carvalho e o grupo Casuarina (Candeeiro da Vovó, Alvorecer e Sereia Guiomar).