Especial

Dominguinhos do Estácio, um artista de cartaz

Por Vivi Fernandes de Lima - 07/06/2021

A pauta era a história das escolas de samba no Rio de Janeiro, uma reportagem para Natural do Rio, revista em homenagem aos 450 anos da cidade encartada no jornal O Dia em janeiro de 2015. Queria dar um destaque para a Escola de Samba Estácio de Sá, cujo bairro traz memórias de outras escolas, inclusive da Deixa Falar, fundada por Ismael Silva em 1928 e considerada a primeira delas. Um artista simbolizava os dois assuntos, o bairro e a escola: Dominguinhos do Estácio.

Fomos, eu e o fotógrafo André Luiz Mello, à quadra da agremiação e esperamos pelo entrevistado, que chegou ofegante, desculpando-se pelo atraso, que nem foi tão grande. Logo notamos que ele estava convalescendo de uma cirurgia. O olhar do fotógrafo pescou uma informação que contribuiu para que a entrevista se tornasse mais sensível, sem a pressa habitual do jornal do diário: havia uma cicatriz recente no peito do entrevistado, visível atrás da camisa de botão.

Expliquei a pauta, disse que queríamos entender melhor a história das escolas de samba a partir de sua experiência e que por isso precisava começar perguntando por sua infância. Ele lembrou não só do tempo de criança, mas da alegria que havia no morro, das músicas que eram feitas ali, da irmã – cujo fim trágico acredita ter inspirado um sucesso de 1954 – e de bastidores da escola de samba, como a influência de um supermercado na identidade da Estácio de Sá. Na ocasião, estava confiante com o desempenho que a escola teria na avenida desfilando um samba de sua autoria. Quando perguntei o que faltava para voltar ao grupo especial, não titubeou: “Só falta o desfile desse ano”. Dito e feito, a Estácio foi campeã da Série A.

Domingos da Costa Ferreira nasceu em 1941 no Morro de São Carlos, favela do bairro do Estácio, Zona Central do Rio de Janeiro. Puxador de samba – como preferia ser reconhecido –, compositor e folião dos blocos e da avenida, por onde passou, Brasil adentro e afora, carregou o bairro do Estácio com ele, num exemplo de integração entre homem e território, cultura e orgulho. Uma parte de seu depoimento foi publicado à época da entrevista, mas aqui é possível acessar o conteúdo que ficou guardado numa nuvem virtual.

Dominguinhos, que se encantou no último 30 de maio, levou a cultura carioca para outros continentes e fez da música que aprendera no São Carlos a garantia de uma vida melhor. Sem lamentar, disse: “Não consegui ser um artista de cartaz, mas consegui ser conhecido”. Conseguiu sim, Dominguinhos, conseguiu.


Você nasceu no São Carlos?


Morava no último barracão do morro, o último. Morava tão alto que não tinha número. Num lugar chamado Terreiro Grande, no chapadão do morro. Dali surgiu a Mineira de um lado, São Carlos pro outro, Querosene pro outro. Eu carreguei água pra tomar banho, pra beber. Isso quando não caía, né? Às vezes quando chegava lá em cima, caía e derramava a água. Era só barro, não tinha tratamento nenhum. Depois a gente foi crescendo e foi melhorando, chegou luz. Quando eu nasci nem luz tinha, era lamparina mesmo.

Frequentava o samba desde cedo?


A gente fazia pagode no Terreiro Grande, numa caixa de bacalhau tocando cavaquinho, violão e a gente cantando. Mas não tinha cocaína, não tinha maconha, todo mundo se respeitava. A gente era feliz e não sabia. Muita gente foi criado junto, eu, Gonzaguinha, Luiz Melodia... Todo mundo lá em cima, fomos criados juntos.

Como a escola de samba entrou na sua vida?

Sou filho de português com uma pretinha, por isso que eu sou meio assim (fazendo gesto de mais ou menos com uma das mãos). Miscigenação mesmo, né? Meu pai tinha uma tendinha e rolava uns musicais na porta da tendinha do meu pai. Um dia me chamaram pra ir pra um bloco, o Bafo da Onça, que era no Catumbi. Chegando lá, fui tocar pandeiro na bateria. Aí um dia, um cantor brigou com o outro, o bloco ficou sem cantor. Me perguntaram quem sabia cantar e falei “sei um pouquinho”. Aí fiquei cantando seis anos no bloco. Aí passei a gravar pelo Bafo da Onça, compor pro Bafo da Onça... Aí a escola (Unidos de São Carlos) um dia me chamou pra cantar.

Quando?


Isso foi em 68, 69, por aí...

Mas você já frequentava a escola, certo?


Já, sim, conhecia todo mundo, só não era o cara. Eu já defendia samba-enredo de colega pra ajudar na disputa interna. Observaram que eu não era tão ruim. Tinha um cantor que não era da comunidade, se chamava Celso Landrini. Era uma figura maravilhosa, mas só que era mais roqueiro. Só que era bonitão, tinha nome e tal. Eu segurava o fio pra ele. Um dia, teve um samba que, quando chegou na avenida, ele não suportou a afinação. “Terra de Caruaru” (1970) era o nome do samba. Eu observava que cada vez que ele voltava na primeira parte do samba, subia uma coma. Então fiquei esperando ver até onde ele ia aguentar (risos). Dizia mais ou menos assim:

Oi, Maracatu, maracatu, cantarei…
Oi, Maracatu, maracatu, gingarei…

Percebe como sobe? Tava uma coma acima.
Quando chegou na avenida, ele tava na décima coma, chamando urubu de meu louro, desesperado. (risos) Falei, então: “Agora tu me dá”. Eu tinha a voz muito aguda e aguentei cantar o samba até o final.

Como era a relação da escola com a comunidade?


No início da minha carreira não existia isso da escola vestir a comunidade. Existiam as alas, aquela história que o cara trabalhava o ano inteiro pra se fantasiar no carnaval. A comunidade não recebia porque não tinha liga, a Riotur não se preocupava muito, o carnaval era feito pelas grandes sociedades, ranchos, não era feita pelas escolas de samba. As escolas ainda estavam procurando o espaço delas. O componente da comunidade tinha as chamadas alas, alas reunidas, cada ala cuidava de si, recebia o figurino, mandava fazer e assim foi. Quando a coisa começou a se organizar, que veio a liga independente das escolas de samba (Liesa), o carnaval já foi supervalorizado, recebia um pró-labore da Riotur, as direções de escola acharam por bem que as comunidades deviam ser vestidas pela própria escola. É o que acontece hoje. O componente da comunidade não exigia nada da escola.

A escola de samba fazia parte da cultura dos moradores? Onde aconteciam os encontros?


Teve vários locais. Como a escola era no morro, a localização não era adequada para o que se faz hoje. Eu morava na parte de cima do morro. A quadra era mais embaixo. Era tudo muito dentro das limitações, nada de glamour, não tinha nada disso. Fazia-se baile o ano inteiro pra juntar um dinheirinho pra fazer as alegorias, e as alegorias eram feitas com outro tipo de material. Não era esse material de hoje, que o cara vai na China e traz um contêiner. Naquela época, não era isso, era tudo manual mesmo. Os moradores é que faziam isso tudo no barracão. E era um barracão mesmo, daqueles que chovia dentro.

Você ia aos bailes?


Eu ia aos bailes e cantava desde muito novo. Sempre gostei muito.

O que você cantava?


O Jamelão tinha um repertório muito bom de bailes. Então a gente se inspirava nele. Tinha um conjunto regional do morro, tudo autodidata, e a gente pegava as músicas do Jamelão, tipo Torre de Babel, um repertório riquíssimo de Lupicínio Rodrigues, samba-canção... Sofri também uma influência muito grande do Roberto Silva, que era o “príncipe do samba”, cantava muito as músicas dele. Infelizmente ele gravou uma música que passou a fazer parte da minha vida negativamente, que não canto.

Qual?


Eu tinha uma irmã que suicidou com 22 anos, tacou fogo às vestes. É muito triste. (Emocionado, canta inteira a música “Mãe solteira”, de Wilson Batista e Jorge de Castro)

Hoje não tem ensaio não
Na escola de samba
O morro está triste
E o pandeiro calado
Maria da Penha
A porta-bandeira
Ateou fogo às vestes
Por causa do namorado
Hoje não tem ensaio não...
O seu desespero
Foi por causa de um véu
Dizem que essas Marias
Não tem entrada no céu
Parecia uma tocha humana
Rolando pela ribanceira
A pobre infeliz
Teve vergonha de ser mãe solteira

A história é real, existiu.

Eu conheço o samba, é lindo. Não sabia que era sua irmã.

Essa música mexia muito comigo. No show, quando tem plateia, não consigo cantar porque passa um filme na minha cabeça.

(…)

Eu não consegui ser um artista de cartaz, mas consegui ser conhecido. Já viajei o país todo, visitei muitos países e a minha história não é muito diferente de outros que conseguiram ganhar a avenida.

(...)

Sempre fui muito sincero comigo mesmo. Nunca bebi um copo de cerveja. Que sambista é esse, né? Nunca fumei um cigarro, nunca usei droga. Falo isso sem medo de errar. O mundo do samba sabe disso.

Voltando pra história da escola. E os mais antigos? Ismael Silva está na memória da escola?
Nem tanto. A gente respeita muitos os antigos, os fundadores. Só sei que era da turma do Pixinguinha, Benedito Lacerda, Donga. Na casa da Tia Ciata, faziam lá a roda de samba deles. Ismael resolveu fundar uma escola de samba aqui no Estácio, que foi a primeira, que é a nossa. Deixa Falar foi o primeiro nome. Por isso meu samba deste ano inicia com a “Deixa falar”, porque foi ele quem começou.
A gente tinha que falar de alguns artistas sem citar o nome. “Deixa falar, aqui é o Estácio” é o Ismael. “Se você quer matar-me de amor, que seja aqui” é o (Luiz) Melodia. “Cantar e cantar e cantar” é Gonzaguinha. Aí vem Dominguinhos: “Olha meu povo chegando, medalha de ouro”. Porque fui eu que botei o nome da bateria de Medalha de Ouro.

Em casa, seus pais falavam da história das escolas de samba?

Falavam, mas era tudo muito dividido naquela época. Quando veio a ideia da escola de samba, surgiu a Deixa Falar, mas logo em seguida surgiu um monte de escolas de samba, subdividindo o morro. Cada lado do morro tinha uma escola de samba, tudo pequenininho. Eu era da “Cada ano sai melhor” – minha família pertencia a essa. Tinha o “Independente do Rio”, na parte do Rio Comprido, “Vê se pode”, que era bem aqui em cima, “Recreio de São Carlos” era o nome oficial. Num domingo, me lembro bem, era menino ainda, surgiu a ideia de reunir as escolas e fazer a Unidos de São Carlos. Aí, sim, aí surgiu uma escola só do morro. Foi onde surgiram sambas antológicos, como Círio de Nazaré.

Aqui tinha um comércio chamado Casas da Banha, que era vermelho e branco, que queria ajudar a escola, mas com uma condição: mudar o nome pra Estácio e as cores tinham que trocar de azul e branco pra vermelho e branco, que eram as cores da Casa da Banha. E ficou até hoje.

[A Estácio de Sá adota como data de fundação 1955, ano da criação da Unidos de São Carlos. As mudanças de nome e de cores ocorreram em 1983.]

O que nota de mais diferente, dessa época da Unidos de São Carlos pra hoje?
Muita coisa mudou. A mentalidade. Culturalmente falando, apareceram intelectuais, gente fazendo coisas que a gente nem imaginava. A escola foi crescendo, foi engrandecendo. Foram chegando jovens feito você que se preocupam com isso. Já tinha departamento cultural, como harmonia, bateria. Os temas, os enredos, eram bolados pelo departamento cultural. Chamava-se um artista plástico e ele, em cima daquela ideia, fazia o carnaval. Uns carnavais muito bonitos, mas era tudo meio fosco, não esse brilho que Joãzinho (Trinta) veio dar, (Fernando) Pamplona, Max Lopes, Rosa Magalhães... Eles mudaram a cara do carnaval.

E a relação com outras escolas?
A Estácio sempre foi muito respeitada. Até hoje, de gerações em geração, por ela ter sido a primeira escola de samba. A dona Dodô, que morreu agora, era porta-bandeira do “Seu Bicho Novo”, que era nosso aqui. Ele, o marido, era o mestre-sala da Deixe Falar. Dodô era da Portela, mas morava aqui no Morro da Providência. O primeiro casal de mestre-sala e porta-bandeira. Morreu só agora com 95 anos.

Como vê as novas gerações de sambistas?

Vejo muito bem, eles estão chegando junto. Claro que eles têm uma outra filosofia. O samba do jovem tem uma série de coisas que não passa pela nossa cabeça, como cronometrar o samba. Porque naquela época uma escola entrava na avenida e saía uma hora e meia, 3 horas… Hoje não, tem um período a cumprir. Aí o compositor já vem com um poder de síntese e enxuga dentro daquele horário.

Ficou mais competitivo?
Virou uma competição forte. Quem ultrapassar o horário perde ponto mesmo estando linda de morrer. Tem que ter os ensaios técnicos, como tem agora, que vê o tempo que o casal de mestre-sala e porta-bandeira vai se exibir pro jurado, a bateria, e assim vai... Houve uma modernidade muito grande.

O que falta pra voltar pro grupo especial?

Pro Estácio voltar pro grupo especial só falta o desfile desse ano. Esse ano, vai subir. Se não subir, vou pegar meu pandeirinho e guardar. A Estácio tá pronta pra ganhar o carnaval.

[Um mês depois da entrevista, o palpite de Dominguinhos se confirmou e a Estácio voltou para o grupo especial.]

Continua a integração com os moradores?
Ficou maior. Como a competição ficou mais ferrenha e cada compositor traz a sua torcida, traz a comunidade pra dentro da escola. Antigamente não tinha isso. Pegava a ala das baianas, das damas e cantava o samba ali no meio. Hoje, não. Hoje salve-se quem puder. Se eu acho que meu samba é bom, tenho que investir nele. Fazer algo pra chamar atenção, gravar, fazer camisa de samba, trazer minha comunidade, com isso a união veio mais rápido.

O que é a Estácio pra você?

A Estácio é tudo, se não fosse ela, nem sei o que seria de mim, sou um cara “analfabeto”, não estudei, sou autodidata em tudo. Nunca fui pra escola, aprendi a escrever quando já tinha mais de 20 anos, já tinha até uma filha. Até pra trabalhar em banco, como trabalhei por 10 anos, entrei lá entregando carta, fui aprender datilografia lá dentro do banco. Servi ao Exército na pior espécie, na cavalaria. Quer dizer, lavava cavalo porque não sabia fazer nada. A Estácio me deu oportunidade de cantar, mostrar meu trabalho autodidata pra quem entendia e sabia se tinha valor ou não. Então, foi isso que a Estácio me deu. Hoje não sou mais cantor oficial da escola, eu sou um componente vip porque já ganhei muito samba-enredo aqui, já levei o nome da escola pra Taj Mahal, Estados Unidos, já cantei pra Rainha da Inglaterra, pro Príncipe de Mônaco. E no país inteiro. Dia 3 (fevereiro de 2015), estou indo cantar em Macapá. Os caras sabem que eu existo porque a Estácio me colocou na mídia. Tive muita sorte também, nos melhores momentos da Estácio, eu estava junto. Quando foi campeã com Círio de Nazaré, que o país respeita muito, por isso sou católico e devoto, faço parte da arquidiocese de lá (do Pará). Peguei uma paixão muito grande pelo estado do Pará. Entro num restaurante lá e não me deixam pagar a comida, tudo porque a Estácio me fez assim.

Teve muitos sucessos, não foi?
Sucessos, já tivemos muitos. Consegui sair do morro com o dinheiro do Tititi do Sapoti (Que tititi é esse que vem da Sapucaí/ Tá que tá danado, tá cheirando a sapoti), consegui comprar casa pros meus filhos. Ninguém lá em casa mora alugado. Tititi ajudou a mim, a meu parceiro Darci do Nascimento e Djalma Branco, que não está mais entre nós. Até hoje é sucesso, toca nas rádios, nos bailes.


Mas vieram outras escolas…
A Imperatriz (Leopoldinense) se interessou por mim, cantei lá por alguns anos. Na Viradouro também, Grande Rio... Nunca deixei trocarem meu nome, sempre fui Dominguinhos do Estácio. Meu nome não tem muito a ver com a escola. Quando a escola se chamava Unidos de São Carlos, eu já era Dominguinhos do Estácio por causa do bairro. Senão tinha que ser da Estácio, não do Estácio.

Você gosta de compor?
Muito! Curto muito a composição. Acho que minha maior colaboração no samba tá aí. Fica pra sempre. Eu hoje faço um show só com aquilo que eu componho ou gravei, dentro da minha história. Quando o show é em teatro, converso com o público… Tenho um disco pra fazer, vou mostrar um repertório do morro, só de autodidatas, sem registro, sem nada, ninguém conhece eles.

Inéditas?
Tudo inédito. Músicas de 70 anos atrás que, se eu cantar hoje, você vai pensar que foi feita ontem à noite, porque tem um linguajar lá de trás, perdura até hoje.

Dinheiro, comprador de consciência
condeno sua existência,
há muito mal em você...
Dinheiro, causador de tantas almas
será que o mundo não vê
Eu sei perfeitamente o que deus disse
ele mandou que a sorte sorrisse
pra quem quisesse vencer
também deixou o mal ao bem declarar guerra
mandou um homem na terra multiplicar e crescer
depois, muito depois, 30 dinheiros,
perguntou ao mundo inteiro
quem tem moral pra vender

Isso eu ouvi quando estava no jardim de infância.

O pessoal continua cantando?
Ninguém canta isso.

Tá só sua memória?
Só na minha memória. Tem uma explicação, né? Não fumar, não beber...

E gostar muito também, né?
É, isso também.

Tinha um compositor no morro chamado Mário Russo, que da realidade, ele fazia música.

É sábado lá morro outra vez
Mais uma noite de orgia que eu passo com vocês
De um lado, bebida, mulher e música
De outro lado, discussão ou valentia de alguém

E quando vem surgindo a madrugada
Alguém se esvai na calçada, excesso da bebedeira
Se tu for no morro, tu vai ver isso

É um tal de um valente arrependido
que perdeu seu grande amigo
pela bobagem que fez
mas a moral da história está no verso
que agora eu canto para vocês

E vai por aí…

Muito rico em melodia…

É, comercialmente falando, hoje não tem valor.

Será?
Bem, eu sou retrógrado nisso aí. Eu gosto de gravar uma coisa que toque em você.