Especial

Augusto e Malaguti, entre canções e epidemias

Por Braulio Neto - 14/10/2021

Há um nome, na verdade dois, ausente(s) na ficha técnica desse primoroso trabalho que é “Como canções e epidemias”. Nela estão registrados 11 parceiros do instigante letrista brasileiro Aldir Blanc.

Digo isso inspirado por João Gilberto em “É preciso perdoar” (Alcyvando Luz/Carlos Coquejo), Caetano Veloso em “Sonhos” (Peninha), Milton Nascimento em “Me deixa em paz” (Monsueto), só para citar alguns. Apropriação de uma cultura de composição por parte do intérprete, tornando-se este(s) coautor(es) da obra. No caso presente, 14 gravações, em menor ou maior grau, buscando o mesmo amálgama.

No mergulho de Augusto Martins (voz) e Paulo Malaguti Pauleira (piano) na portentosa criação de Aldir Blanc é possível detectar esse sintoma que resulta em acordes revirados e ourivesaria num sibilo. Na agora imortal mesa de bar do “bardo da Muda”, falecido em maio de 2020 devido a COVID, a dupla pode postular cadeira destinada a parcerias.

“Olhar dos cães... rebenque estala... línguas rubras dos amantes”. O letrista que escarafuncha sentimentos sem piedade ganha na canção de abertura _ “Caça à raposa” (Aldir/João Bosco), donde sai o verso título da obra, uma voz q saliva ansiedade. Voz potencializada por mão esquerda pesada no piano. Há quem enxergue aqui uma simbolista construção de versos. O canto embasa tensão fantástica, numa abertura de audição arrebatadora.

Esse tom AGRESSIVO na abordagem da composição se observa também em “O rancho da goiabada” (Aldir e João Bosco). Ainda que comece light, ganha coro e encorpa algo totalmente fora do comum na regravação. Pra início de conversa, o standard norte-americano “Summertime” (irmãos Gershwin + DuBose Heyward) é citado transverso, ganhando a tradução “É verão e a vida é difícil”. Na mão esquerda, piano boogie, na direita, um refrão de notas cintilantes no meio da gravação que cria quase um refrão pianístico. O cantor encorpa ATORalidade de quem, literalmente, interpreta e com água na boca entoa “babata frita”. A saga ainda contemporânea dos boias frias e a caneta insistente do mestre Aldir: ainda assim “amar...”.

Doutras plagas, vem de Alagoas a titularidade na harmonia de “Êxtase”. A criação enviesada de Djavan ganha uma clave de sol que buzina, anunciado que lá vem batida para também aqui fazer até “Barrabás” cair na roda. Canção quase toda grooveada, é Aldir em sua mais óbvia expressão: insano na arquibancada, no botequim, no diálogo, ou falta de, amoroso _ “Devia ter partido a sua cara” (volto a esse ponto no fim do texto).

A digital única do letrista oscila em digressões que vão da violência ao LÚDICO. Muito feliz a escolha de um um “tchururu” para abrir a suingada “Querido diário” (Aldir/João Bosco). O “me masturbei” foi censurado na gravação original do disco disco “Comissão de frente”. Aqui não. E temos dúvida sobre quem não sabia escrever à época?

“Quando negro entra na dança / O seu braço é uma lança”. “Filho de Núbia e Nilo” (Aldir e Moacyr Luz) é a exceção entre os fonogramas. Traz participação especial de Zé Renato, entoando belo vocalise. E a partir do verso _ “Quando bate palma / O suor da alma / Transparece na cor” _ ganha palmas literais puxadas num baticum que remete a ijexá.

Há no trabalho uma muito inteligente transposição de ambiência estética. O mais longevo parceiro de Aldir foi João Bosco. E o polegar da mão direita do violonista é um capítulo à parte na composição e execução instrumental na música brasileira. Acrescente-se a isso, os violões de “harmonizações aranha” de um Guinga ou a síncope “madeira de lei” de Moacyr Luz _ além do Dja já citado. Não houve intimidação. O disco versa sem rima.

Isso fica explícito na abordagem de LEVEZA insuspeita para algo glorificado pela explosão no palco de Elis Regina _ “Corsário” (Aldir e João Bosco). A canção ganha densidade a baixos decibéis. Quando Augusto clama flamejante em “Roseirais”, há um piano que dialoga com intervalos e nos convida a um precipício de notas opacas.

Ritualismo continua com um convite para dança de salão. “Odalisca” (Aldir e Guinga) é uma valsa na mais efetiva acepção do termo. Clássica. Augusto abusa de bela suavidade e é acalentado por poucas e singulares notas de Pauleira.

Padronagem desacelerada também embala o maior sucesso de mídia da cantora Nana Caymmi, “Resposta ao tempo” (Aldir/Cristóvão Bastos). Há uma homenagem a Cristóvão com a citação de “Tua cantiga” (dele e Chico Buarque) logo nos primeiros segundos de audição. Em arranjo reverente.

Ainda nas cadências mais lentas, talvez chegue-se ao magnum opus do repertório _ “Muito além do jardim” _ pérola inédita da lavra com Moacyr Luz. Uma canção bucólica, merecedora de piano detalhista e plano que fornece cama para uma voz falar melodicamente a delícia de cada sílaba. Que maravilha.

Nem tudo na vida é “Causa perdida” (Aldir/Rosa Passos). A interpretação de brisa na voz e escolha brejeira de notas é a mais respeitosa ao “ethos” entre os parceiros. Contudo, realça um diálogo instigante proposto por Aldir, nessa, tricotando com São Judas Tadeu.

Sem recorrer a milagre, pandeiro já no início, “Vale à pena ouvir de novo” (Aldir e Sombra) é composição reinventada numa emulação da síncope Cacique de Ramos. Essa resulta dum pandeiro hasteado por Augusto a dialogar com um piano de ataque e retenção. A canção flui sem surpresas, mas sob cadência só possível mesmo num contexto tão subversivo ao pagode.

Noutra direção, angustiada, Ivan Lins transborda “azulado” em “Por favor” (dele com Aldir). Pauleira brinca de blues man, pinça notas menores e as faz tilintar. Ao término da canção, Augusto esbanja seu alcance tonal na melodia. Um arranjo que parte de notas despretensiosas para um grand finale de súplica.

Deixei por último as duas próximas canções, devido, não apenas, por “Altos e Baixos” (Aldir e Sueli Costa) ser a última faixa sugerida à audição no streaming. Assim como a já citada “Êxtase” e junto com “Retrato cantado” (Aldir e Márcio Proença), a trinca compõe uma fotografia escrita da perversão na obra “Blancquiana”. Correria o risco algum dia de #cancelamento?

Bem, Aldir Blanc é provavelmente a maior tradução em texto cantado assombrado pela alma Rodrigueana. O infortúnio, a dor, a paixão escarrada, a liturgia da traição e também o lirismo do encantamento brotam de Nelson, assim como em Aldir, a partir de uma cenografia sub(urbana) para qualquer endereço onde houver vida fora de esquadro.

O “Devia ter partido a sua cara” de “Êxtase” não estaria entre as expressões mais politicamente corretas do contemporâneo. Num pano rápido também seria possível pensar no dúbio caráter literário de “As avós”, da prêmio nobel Doris Lessing. Ou nas pulsões do mundo fálico de Freud. Ainda, talvez, na exacerbação da luxúria em Sade. Quem conheceu a biblioteca em torno de uma mesa de sinuca, num apartamento da Rua Garibaldi, na Tijuca, como eu, sabe que Aldir Blanc mesclou um pouco de tudo disso e muito mais à apoteose da carne, essa de um outro marquês, o da Sapucaí.

Sendo assim:

Triste, triste, triste, “Retrato cantado” (Aldir e Márcio Proença) traz um personagem e seu desvelo zero por si e seu entorno. “Quem me vê sentado / atrás dessa mesa de escriturário, não vê o tarado, o louco, o sanguinário”, mais adiante, também “gigolô” por “não me esquecer de você”. A culpa pela insânia é da outra. No escopo sonoro, talvez seja a canção mais minimalista de todo trabalho. Poucas notas ao piano, melodia curta, voz densa, resultando em acachapante audição a serviço da solidão.

Encerrando o “disco”, a mais amarga do repertório, “Altos e baixos” (essa com Sueli Costa), foi gravada em 2005 e na gaveta permaneceu até o ano passado. Serviu de pontapé inicial para toda esse portentosa submersão no universo de um criador perturbado. Fala de um homem que ama e, por isso, agride sua amada. Edipiana. Devido à caneta magistral, a música consegue ser singela e sensível ainda que terrivelmente cruel. É decantada aos detalhes pela acuidade no piano e uma voz de timbre que afaga sílabas.

Augusto Martins e Paulo Malaguti Pauleira foram épicos, fazem história com piano e voz. Fizeram jus à obra de um gênio imortal capaz de gerar beleza até quando a vida é víscera. Louvaram com galhardia o brainstorm epidêmico do autor de obrigatórias canções.

Lástima a ABL não ter entendido isso há mais tempo.

Um esteta imortal da LITERATUAL MUSICAL BRASILEIRA.

Aldir blanc é conterrâneo, perturbador e letrista.

P.S.: O trabalho será lançado em live do Blue Note SP, no próximo domingo _ 17 de out, às 20h, num “Tributo a Aldir Blanc”.