Especial

1973: reinventando a MPB numa série de TV

Por Mehane Albuquerque Ribeiro - 23/10/2018

A tarefa, à primeira vista, parecia impossível. Reunir um time com mais de 80 pessoas — entre artistas, músicos, jornalistas especializados, produtores e críticos — para falar do ano de 1973 na música popular brasileira, em uma série documental de 13 episódios produzida para a tevê. Mais impossível ainda, com uma equipe de apenas oito pessoas, um oceano de dados de pesquisa que incluíam centenas de canções, fotos e registros audiovisuais da época. O ano musical de 1973 já havia sido mostrado em livro, organizado pelo jornalista e pesquisador Célio Albuquerque — idealizador, roteirista e coordenador de conteúdo da série — com textos de 50 autores, entre jornalistas e artistas, sobre 50 discos lançados naquele ano. De Renato Vieira a Dácio Malta. De Moacyr Luz a Tavito e Marcos Suzano. De Sílvio Essinger a Beto Feitosa e Washington Santos.

O livro "1973- O ano que reinventou a MPB" foi publicado em 2014 pela Sonora Editora, e lançado em algumas capitais do país, com uma particularidade, porém. Eventos de autógrafos com palestras sobre a censura na ditadura, e shows com músicas dos discos citados no livro, continuam acontecendo até hoje em diferentes lugares, organizados por simpatizantes, músicos ou pelos próprios autores. O último deles foi no Rio de Janeiro, em setembro, no Centro de Música Carioca Arthur da Távola. Batizado de "1973 - Uma trilha sonora", o evento uniu artistas para reinterpretar sucessos deste período, entre eles Novelli, Tunai e Rildo Hora (também um dos autores do livro)

A partir da vida própria que o livro ganhou, se tornando também uma referência para a pesquisa na área musical, surgiu a ideia da série "MPB 73 - o ano da reinvenção". Nesse momento surge o produtor Roberto Faissal, da Cinemar, e o projeto começou a ganhar forma. Em seguida, o Canal Brasil manifestou interesse na veiculação. A essa altura, todos devem estar se perguntando: mas por que 1973? O que aconteceu de tão especial assim na MPB?

Foi um ano ímpar. Literalmente. Com o fim da era dos festivais da canção, em pleno regime militar, em meio a um certo marasmo e desesperança, ocorreu algo inesperado: uma espécie de reinvenção da música brasileira, deflagrada não apenas pelo lançamento de obras-primas de artistas já consagrados, mas também pelo surgimento de novos talentos que apresentavam ao público seus primeiros trabalhos.

Foi um ano de músicas emblemáticas: Cálice, de Gil e Chico; Que as crianças cantem livres, de Taiguara; Uma vida só, de Odair José; o LP inteiro dos Secos e Molhados; e a arrebatadora estreia solo de Raul Seixas. Teve ainda, Mentira, de Marcos e Paulo Sérgio Valle e várias outras que estiveram sobre o crivo da censura, ou tentavam dribá-la com as mais criativas soluções.

Um ano, também, de discos polêmicos, como o Araçá Azul, de Caetano, talvez o menos comercial de seus LPs. O disco Índia, de Gal, cuja capa criou um grande alarde, trazendo uma foto da cantora, da cintura para baixo, com uma tanga mínima; e na contracapa, Gal com os seis desnudos. Foi suficiente para que a censura implicasse, embora não houvesse entre as músicas qualquer conteúdo que merecesse uma tesourada. Depois de alguns acertos, o disco foi para as lojas com um invólucro de plástico, como as revistas da época consideradas de conteúdo "para maiores". Não mais polêmica do que a capa do disco de Gal, a de "Todos dos olhos", de Tom Zé, até hoje é lembrada pela ousadia da foto que reproduzia um "olho" humano, mas que seria, na verdade uma bola de gude no ânus ou na boca de uma modelo. As capas, aliás, são um capítulo à parte, com obras-primas de artistas como Elifas Andreato e Caulos, outro que desafiou os censores ao "tirar" a boca de Sérgio Ricardo com uma tarja, nas fotos de capa do álbum.

Uma das singularidades de 1973, foi o surgimento de novos artistas, que somados àqueles já conhecidos, trouxeram propostas inovadoras em seus discos de estreia. João Bosco e Gonzaguinha, com LPs que levam seus nomes; Raul Seixas, com Krig-ha, bandolo!; Pérola Negra, de Luiz Melodia; Manera fru fru, manera, de Fagner; Ou não, de Walter Franco; Eu quero é botar meu bloco na rua, de Sérgio Sampaio; e o disco Secos & Molhados, do grupo que causou uma estrondosa repercussão, não só com as músicas, mas com figurinos e a performance de Ney Matogrosso. Estes estreantes, nem todos um sucesso de vendas, ganharam o reconhecimento do grande público, conquistando muitos seguidores até hoje.

Voltando à produção da série, pouco mais de um ano depois de iniciada a pesquisa, em julho do ano passado, a equipe de gravação saiu a campo para colher os depoimentos. Nomes como Odair José, Paulo César Araújo, Zuza Homem de Mello, João Donato e Raimundo Fagner contaram as histórias por trás discos, o que hoje nos ajuda a entender melhor como funcionava o mercado fonográfico naquela época, e o que mudou de lá para cá. O produtor executivo Roberto Faissal, os câmeras João Faissal e Zhai Sichen (sob a supervisão de imagens de Rogério Faissal) e o coordenador de conteúdo Célio Albuquerque entrevistaram mais de 80 pessoas, em cidades como Rio, São Paulo, Fortaleza, Recife e Belo Horizonte. A agenda era complexa, mas os imprevistos foram contornados com a ajuda dos próprios entrevistados, que no fim das contas, apostaram na ideia e quiseram contribuir. Houve casos em que as entrevistas, de tão ricas, acabaram passando da hora, fazendo a equipe quase perder o avião; e outros em que os entrevistados vieram de cidades do interior até o hotel onde a equipe estava hospedada, na capital, para não deixar de participar. Entre os entrevistados, praticamente todos os autores do livro "1973, o ano que reinventou a MPB" foram ouvidos, não necessariamente falando sobre os textos que registraram na obra.

Chegando em BH, por exemplo, para uma entrevista com Toninho Horta, a equipe foi avisada de última hora que a gravação seria suspensa, em razão de o compositor ter se atrasado na volta de um fim de semana de shows. As negociações foram até a madrugada anterior e, por fim, a entrevista acabou sendo gravada no dia seguinte, depois da providencial ajuda das irmãs Horta, que cuidam da carreira de Toninho, e que abriram uma exceção para a nossa equipe. Na impossibilidade de ir a Porto Alegre entrevistar o jornalista e pesquisador Emílio Pacheco, este logo se prontificou a vir ao Rio, e a gravação foi feita em um cenário cedido gentilmente pela proprietária da loja de discos Bossa Nova & Cia., em Copacabana, que infelizmente fechou as portas antes mesmo do fim da edição da série. Outra loja especializada em vinil e livros usados, a "Baratos da Ribeiro", cujo endereço atual fica em Botafogo, serviu igualmente de cenário, oferecido de muito bom grado pelo dono Maurício Gouvêia, que também entrou no clima de 1973. Lá, o craque Roberto Muggiati falou sobre "Matita Perê", o disco de Tom Jobim de 1973.

Um aspecto interessante da série é que não há crivo de gênero musical. Todos eles estão representados com o que de mais expressivo foi produzido naquele ano. Há episódios tratando especificamente de cada um deles, englobando também a regionalidade. Sendo assim, há compositores e canções do nordeste, sudeste, minas e sul; além de ritmos como samba, popular, rock e gêneros mais alternativos, representados por aqueles considerados 'malditos', ou por ritmos não tão conhecidos assim, mas que tinham sua parcela de público, como é o caso do psicodélico nacional, com Marconi Notaro e seu LP "No Subreino dos Metazoários"; e a dupla Lula Côrtes e Lailson de Holanda, com o antológico disco instrumental Satwa. A equipe de pesquisa teve acesso a uma música, àquela altura ainda praticamente inédita, "Arcos-Paixão e Morte", de João Bosco e Aldir Blanc, que acabou não entrando no LP de Bosco de 1973, e hoje integra o acervo da Rádio Batuta, do Instituto Moreira Sales. Mesmo preterida, como explica o jornalista Luiz Fernando Vianna na entrevista, a canção é um marco da carreira destes grandes compositores, além de trazer no DNA a marca registrada do talento da dupla.

Gravadas as entrevistas — vale mencionar que alguns artistas não se contentaram apenas em falar, e deram até uma plalhinha —, teve início a terceira fase, talvez a mais complicada: a negociação das músicas com editoras, gravadores e artistas; e também as autorizações para uso de fotos e vídeos. Para a negociação dos fonogramas e vídeos, a série contou com o trabalho da produtora Ana Lúcia Theodósio, que apesar da grande experiência nesta área, teve que contornar vários imprevistos, entre eles, a impossibilidade do uso de algumas músicas, em razão de complicações burocráticas, ou mesmo o veto de alguns detentores dos direitos. Nada demais para uma produção desta envergadura, gerando sempre um "plano B" que, em alguns casos, se mostrou até melhor do que a ideia original.

No caso das fotos, que ficaram sob minha responsabilidade, como uma das produtoras, o mais desafiador foi obter autorização de imagem dos artistas já falecidos. Alguns deles representados por vários herdeiros, filhos de casamentos diferentes, ex-mulheres, além de parentes detentores dos direitos. Mas apesar dos prognósticos contrários, tudo acabou sendo resolvido também com a ajuda dos envolvidos, que forneceram contatos, intermediaram conversas e embarcaram de coração aberto na proposta. Destacam-se os casos dos herdeiros de Zé Rodrix, Raul Seixas e de Taiguara, que deram total apoio à produção, colaborando, em alguns casos até, com imagens inéditas de acervo pessoal.

Da mesma forma, a edição, assinada por Zhai Sichen e Laura Mollica, foi extremamente trabalhosa, em razão da grande quantidade de material e das escolhas que precisaram ser feitas em função do tempo de cada episódio, e da ordenação dos assuntos. Com a apresentação do locutor Fernando Mansur, pontuando temas e entrevistas, a série conta ainda com trilha sonora original, composta e executada pelo pianista e compositor Fernando Merlino (que atuou com sua banda).

A série MPB 73 - O ano da Reinvenção estreia no próximo sábado, 27 de outubro, às 21h30m, e será exibida no Canal Brasil sempre neste dia e horário; e também em dias e horários alternativos: domingos, às 12h; e segundas, às 17h. A classificação é livre.