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Viola Perfumosa, com celo e vozes

Por Daniel Brazil - 20/12/2018

Ninguém pode negar que 2018 foi um ano turbulento. Rolaram algumas coisas boas, muitas coisas ruins, e vamos precisar de algum distanciamento para avaliar o impacto disso no futuro.
No campo da música popular, não poderíamos deixar de destacar aqui na Revista Música Brasileira um dos trabalhos mais delicados e profundos vindos à luz em 2018. Três personalidades com carreiras distintas, mas unidos por um dedicado amor pela cultura brasileira.
Ceumar, cantora e instrumentista, tem voz de nascente fresca no meio da mata. É também uma das mais importantes compositoras contemporâneas, atente! Lui Coimbra, rara combinação de violoncelista e cantor, é conhecido por gravações com Ney Matogrosso, Zizi Possi, Alceu Valença e outros figurões, e tem um lindo disco-solo no currículo, Ouro e Sol. Paulo Freire é mestre da viola brasileira e universal, contador de causos e também compositor, desde que tomou água do Urucuia léguas de tempo atrás.
Precisaria de mais uns três parágrafos pra falar deste trio, mas o espaço é curto e o foco é na confluência destas correntes musicais. As origens são história, basta pesquisar.
Mas Viola Perfumosa, disco e show, foram dedicados a Inezita Barroso, e isso já diz tudo. Estamos falando aqui do Brasil profundo, das coisas da terra, do cheiro de capim molhado de sereno. Tudo isso filtrado com refinamento, com a sabedoria de quem rodou o mundo e sabe voltar às origens com o carinho tão necessário.
Luar do Sertão abre o espetáculo, colocando um novo perfume na imortal canção de João Pernambuco e Catulo da Paixão Cearense. Tamba-Tajá, do mestre Waldemar Henrique, renasce pelas mãos e vozes do trio. Índia, o clássico de Cascatinha e Inhana, ganha versão encantadora. Paulinho Freire conta um novo causo, e o repertório ganha um tom mais brejeiro, passando por cantigas do sertão do Caicó (lembra do Villa-Lobos?)
Moda da Pinga é a canção emblemática da homenageada Inezita (tá bom, sei que muita gente vai dizer que é Lampião de Gás ou Ronda. Mas este é o lado urbano da mestra, tão importante quanto).
Horóscopo, de Alvarenga, Ranchinho e Capitão Furtado, é feita com humor caipira e maroto, e é impossível ouvir a nova versão sem um sorriso nos lábios. A beleza de Oi Calango Ê (Hervê Cordovil) nos faz ver, como num filme, as mulheres trabalhando nos cafezais. Coco do Mané (Luiz Vieira) abre alas para as delícias de Bolinho de Fubá (Edvina de Andrade), encerrando com Chitãozinho e Chororó (Athos Campos/ Serrinha) e um belo texto falando da menina Ignez, a homenageada. O auxílio luxuoso de Marcos Suzano em duas faixas é a pitanga que faltava no bolo de fubá.
Esqueci algo? Ah, claro, Amo-te Muito, bela canção de João Chaves, onde Lui Coimbra abre o coração e Ceumar faz uma segunda voz sublime. Quem foi no show, ouviu outras maravilhas. Quem comprar o CD vai querer ouvir muitas vezes.
Quando os gafanhotos cibernéticos parecem destruir tudo o que plantamos por décadas, instaurando uma nova ordem mundial de tediosa e rasteira uniformidade, um disco como Viola Perfumosa soa como alento. Passadista, para alguns, ainda que belo. Inseminador e essencial, para os que acreditam em futuro.