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Torquato Neto, um pássaro de fogo

Por Marcus Fernando* - 08/03/2018

Como ele mesmo descreveu em um de seus textos, Torquato Neto nasceu a 9 de novembro de 1944, em Teresina, Piauí, Brasil, quando a Grande Guerra estava terminando e a sua estava só começando. Foi quando um anjo louco, torto, veio ler a sua mão e lhe disse entre um sorriso de dentes: “Vai, bicho! Desafinar o coro dos contentes!”. E ele foi.

Tristeresina, uma porta aberta, semiaberta... Filho único, a mãe católica, o pai espírita, uma família que tinha medo de sua inteligência. O bom menino perdeu-se um dia entre a cozinha e o corredor. Não deu outra: a vida é assim mesmo, ele foi embora. Saiu de casa trazendo a viagem de volta gravada em sua mão. Numa escala em Salvador conhece Glauber, Gil, Caetano, no momento em que a geração tropicalista definia a sua personalidade. Próxima parada: Rio de Janeiro. Ai de mim, Copacabana!

Na cidade em que se perde, começa a estudar jornalismo mas logo troca o estudo formal pela prática, através de alguns trabalhos na imprensa. Depois, viria a criar um novo estilo de jornalismo cultural. Compõe com Gil, Caetano, Edu Lobo, é gravado por Elis, Nara, Bethânia. Conhece Ana Maria, se casam.

Tropicalismo, divino, maravilhoso. Um dos principais ideólogos do movimento, suas letras eram verdadeiros manifestos, uma geleia geral brasileira que o Jornal do Brasil anunciava. Tropical melancolia, misturando hospitaleira amizade e brutalidade jardim.

Tá na hora e no tempo! O vento trouxe recado de partir (o AI-5 seria decretado poucos dias depois de sua viagem) e ele foi para Londres com Helio Oiticica. Hendrix, haxixe, Pasolini, West Side Story. De lá, vai para Paris, depois volta ao Brasil.

UNE, Cineclube do Calabouço, Paissandu. O assunto é cinema! O Novo de Glauber rapidamente fica velho para Torquato e ele adere ao cinema marginal. Sganzerla, Bressane, Ivan Cardoso. Um vampiro tropical, um serial killer piauiense, aventuras em Super-8. O quente é filmar.

A barra pesa: é preciso não dar de comer aos urubus. É preciso poder beber sem se oferecer em holocausto. Hospício é Deus, algumas internações (Engenho de Dentro, Meduna), tentativas de apagar a luz que o guiava para a destruição.

Quem samba fica, quem não samba vai-se embora. Quando decidiu deixar essa “espaçonavelouca chamada Terra” (Augusto de Campos) atestou: “Fico”. Segundo Waly Salomão, sua morte foi um fotograma de cine-poesia: “Ele foi um pássaro de fogo, naquele sentido do Stravinsky, de iluminação e queima, ao mesmo tempo. Ele tinha uma dose muito grande de antropofagia acompanhada de outra, de igual intensidade, de autofagia”.

Há cerca de 5 anos, depois de um papo de botequim com o poeta Salgado Maranhão, decidi fazer um documentário sobre Torquato. Uma tentativa de jogar uma luz sobre uma obra que, acredito, precisa ser mais conhecida. Eu e Eduardo Ades, o outro diretor do filme, mergulhamos de cabeça na trajetória do poeta piauiense buscando um recorte que levasse o espectador ao universo dele, sua poética, suas inquietações. O resultado chega aos cinemas hoje. Corra, pois todo dia é dia D.

* Marcus Fernando é produtor cultural e diretor do filme “Torquato Neto - Todas as horas do fim”  

(Ilustração: Amorim)