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Marcia Taborda rebobina, em DVD, a história do violão carioca

Por Monica Ramalho - 20/10/2017

"Nos anos de 1920 dizia-se que o violão era o alto-falante da alma brasileira. Quase um século depois, a frase ainda tem muito de verdade", afirma a violonista e pesquisadora Marcia Taborda, professora da Escola de Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), onde coordena o Grupo de Pesquisa Núcleo de Estudos do Violão (NEV).
Lançamento no Rio de Janeiro foi em 16 de agosto, na Casa do Choro.
Paulistanos assistiram à aula-espetáculo no mesmo mês, no Sesc Bela Vista. O DVD foi rodado com fomento da FAPERJ.


A proposta é rebobinar a história social do violão na cultura do Rio de Janeiro - história que se confunde com a própria biografia da cidade. A aula-espetáculo foi gravada em na Sala Guiomar Novaes, anexa à Sala Cecília Meireles. Ao longo de 47 minutos, Marcia Taborda narra a história do instrumento.


“Quando chegou ao Brasil, era uma viola de arame de quatro ordens de cordas. No século XVII, o instrumento ganhou mais um par de cordas e se transformou na viola que ainda hoje está presente na música das diferentes regiões do Brasil, desde os desafios do Nordeste às modas do interior paulista. O documentário não deixou nada de fora, dos primórdios até a sua difusão através da música popular", adianta.
Marcia reuniu um farto material na pesquisa e toda essa viagem no túnel do tempo vem acompanhada por obras musicais executadas com base nas gravações originais.


O violão se consolidou na música popular brasileira ao assumir o papel de um importante instrumento de harmonia, que hoje serve de acompanhamento para os principais gêneros da nossa música popular. O seu uso sempre foi abrangente. Por exemplo, muito antes da estética bossa-novista, que consagrou internacionalmente a sonoridade cadenciada de “um cantinho, um violão”, presente nos versos de "Corcovado", do maestro Tom Jobim, o violão foi um pilar de gêneros nascidos antes, como modinhas, lundus, choros e maxixes. E seguiu reafirmando o seu valor ao desenhar as batidas do samba, do samba-canção e da bossa-nova.


Para desvendar as origens da viola e do violão no Brasil, e especificamente no Rio, a pesquisadora percorreu diversos acervos históricos, nos quais encontrou relatos de viajantes, fontes hemerográficas, iconográficas e registros musicais, em locais como o Centro Cultural do Banco do Brasil e o Museu Imperial de Petrópolis, e, principalmente, a Biblioteca Nacional. “Desde os primeiros tempos da colônia, o violão se tornou um fiel depositário das emoções do povo brasileiro”, diz Marcia Taborda, também autora do livro "Violão e identidade nacional: Rio de Janeiro 1830-1930", lançado pela Civilização Brasileira, em 2011.


O título recebeu o Prêmio Funarte de Produção Crítica em Música, em 2010, e foi inspirado na sua tese de doutorado, desenvolvida no Departamento de História Social da UFRJ, que teve como orientador o historiador José Murilo de Carvalho. Marcia é mestre em violão pela mesma universidade, com dissertação sobre o violonista Dino Sete Cordas, produzida sob supervisão do renomado violonista Turíbio Santos. Marcia foi pesquisadora residente da Fundação Biblioteca Nacional em 2015 e 2016, e acaba de concluir o projeto “O violão na corte imperial”.
Além da aula de história da música, o DVD "Viola & Violão em terras de São Sebastião" traz interpretações de Marcia Taborda. No roteiro, estão as obras "Guardame las vacas" (Luys de Narváez, famoso tema da Renascença espanhola, tocada em um instrumento de época), "Isto é bom" (Xisto Bahia, a partir da gravação original de Eduardo das Neves), "Corta-Jaca" (Chiquinha Gonzaga, com o arranjo garimpado do caderno de músicas de Nair de Teffé), "Cordão de Prata" (Brasilio Itiberê, como executado por Olga Praguer Coelho), "Abismo de rosas" (Américo Jacomino, a partir da gravação original dele), "Graúna" (João Pernambuco), "Estudo nº 8" (Heitor Villa-Lobos) e "Vivo sonhando" (Garoto, inspirada em Raphael Rabello).


Entre as descobertas valiosas de Marcia Taborda, destaque para uma carta manuscrita da imperatriz Leopoldina (1797-1826), em janeiro de 1818, destinada ao irmão Francisco I, que vivia na Áustria. A imperatriz relata o estudo do violão como parte da sua rotina diária na casa de São Cristóvão, ao lado do marido Dom Pedro I: "(...) À uma hora estudo violão e, com o meu esposo, piano; ele toca viola e violoncelo, pois toca todos os instrumentos, tanto os de corda como os de sopro; talento igual para música e todos os estudos, como ele possui, ainda não tenho visto (…) É este, todos os dias, o meu modo de viver".
O violão também fez parte da rotina de outra mulher da alta sociedade do seu tempo: Nair Teffé (1886-1981), mulher do presidente Hermes da Fonseca. Nair apresentou no Palácio do Catete o tema 'Gaúcho', de Chiquinha Gonzaga, conhecido como 'Corta-Jaca', um ritmo sensual que escandalizou a sociedade da época e gerou um pronunciamento crítico de Rui Barbosa, em novembro de 1914. Para alfinetar o rival político, ele atacou o 'Corta-Jaca' como ‘a mais baixa, a mais chula e grosseira de todas as danças selvagens’.


Essa história, que já entrou para o folclore da música popular brasileira, é recontada por Marcia com um diferencial. "Na verdade, Nair escolheu a música a fim de prestigiar composições nacionais, escritas em português”, enfatiza. No DVD, ela interpreta a partitura original, que está no caderno de músicas da ex-primeira-dama - que, ao contrário do que se pensava, executou um solo de violão.


Mais uma mulher fecha a trilogia de descobertas importantes da pesquisadora. A violonista Olga Praguer Coelho, para quem Villa-Lobos criou a versão da "Bachianas número 5". “Os violonistas que fizeram a história da música carioca na verdade vieram de diversas cidades do país para o Rio. João Pernambuco, Dilermando Reis, Garoto, Turíbio Santos e João Gilberto desenvolveram as suas carreiras transitando pelas rádios, casas de espetáculos e estúdios cariocas. A obra para violão de Heitor Villa-Lobos também é um marco dessa época. Olga, nascida em Manaus, era uma senhora da sociedade que se casou com o mestre Andrés Segovia, completava esse cenário”, conta a pesquisadora.